Diário de um Magro

por  CARLOS ALBERTO

De Saint Jean Pied-de-Port a Roncesvalles - 25 Km

A Santiago: 774 km


Quinta-feira, 13 de Setembro de 2001

Meu aniversário: 52 anos. Planejei começar a caminhada exatamente neste dia, pelo caráter simbólico. Na noite anterior, referi o fato aos companheiros durante a janta. De manhã, depois de dormir algumas horas, acordei bem cedo. Durante a noite, pensei que estaria derrubado no outro dia, pelo fato de não ter podido dormir direito. Mas, surpreendentemente, acordei cedíssimo e bem disposto. Só não levantei para não perturbar os demais peregrinos, que ainda dormiam. Quando vi que um peregrino do beliche ao lado se dirigiu ao banheiro, também fiz o mesmo. Era francês, um senhor de nome Marc, que depois iria encontrar em Huntto na subida dos Pirineus, onde me falou que iria só até Logroño, onde mora um irmão, para uma festa típica da região naqueles dias.

Logo depois de sair do dormitório, encontrei a austríaca Hedwig, que imediatamente lembrou do meu aniversário e me cumprimentou. No café, tomei uma taça de chocolate e leite com pão e manteiga, peguei duas enormes bananas entre as frutas deixadas ali para os peregrinos. As bananas seriam da maior valia na subida da montanha, porque não havia comprado nada, nem francos tinha. Deixei uma contribuição na caixinha, em pesetas mesmo.

Nos reunimos na saída do albergue, recolhi água numa bica medieval em frente, só meio cantil, porque alguém disse que no Caminho de Napoleão havia várias fontes, o que depois não se confirmou, acabando por faltar água.

Iniciamos a caminhada às 7h20min. Tudo o que posso dizer é que a subida dos Pirineus foi extremamente difícil, com subidas ora por uma pequena estrada asfaltada, ora por caminhos em meio a campos de pastoreio com muitas ovelhas, ora ainda no meio de bosques.

Apesar da dificuldade, a beleza das montanhas e vales profundos da Navarra francesa é indescritível. Fizemos paradas para comer algo, alongar e descansar: em Huntto, pequeno vilarejo de duas casas bascas típicas, onde encontrei o francês Marc, e na localidade de Vierge. No alto de uma pedra, uma estátua de Nossa Senhora, naquelas alturas de montanhas, com a cadeia dos Altos Pirineus, ao longe, a perder-se de vista.

Depois da subida, que parecia nunca acabar, e que durou toda a manhã e boa parte da tarde, iniciamos a descida na outra encosta, já com Roncesvalles à vista. A descida também foi áspera e me sacrificou muito o menisco do joelho esquerdo.

Não tinha cajado e me servi de um pedaço de pau que recolhera no mato pirenaico, numa das paradas para descansar e comer. Dividimos as bananas que eu tinha, os sandubas que o Ricardo havia preparado no albergue, um melão gostoso que o Mário me havia dado no caminho, e outras coisas que eles levavam.

Quando terminávamos a descida, já próximo de Roncesvalles, no fundo do vale, encontramos vários casais de franceses no meio de bonito bosque. Iam caminhar nas montanhas, como os europeus em geral gostam de fazer, aqueles idosos dispostos. Estávamos o Ricardo e eu comendo amoras abundantes no Caminho. Trocamos palavras e astral elevado com os franceses, que ficaram admiradíssimos de ver dois brasileiros falando na língua deles lá naqueles confins.

Chegamos à Colegiata de Roncesvalles antes das 17h e tiramos algumas fotos numa pequena ponte medieval. Tínhamos visto Roncesvalles lá do alto, quando iniciávamos a descida, toda ela por bosque, de forma que, vencido este, a Colegiata apareceu de repente à nossa frente.

Boa acolhida, bom albergue, acomodação no dormitório, lavagem de roupas, banho e saída para adquirir um cajado para substituir o porrete pirenaico, que fora muito útil. Fiquei muito emocionado com a passagem por aquelas lindas paisagens dos Pirineus, sem maiores problemas físicos, apesar do cansaço natural e da dor no menisco do joelho esquerdo, principalmente na descida. Um creme milagroso oferecido pela generosa austríaca, Hedwig, retirou completamente a dor.

Em Roncesvalles, revisitei a história de Carlos Magno, imperador francês iletrado, mas com aguda consciência da necessidade de educar seus súditos, começando pelas crianças.

No caminho, havíamos conversado muito sobre a história da França e a guerra dos cem anos, na verdade uma disputa jurídico-sucessória entre a Inglaterra e a Franca, por vezes com recurso às armas.

À tardinha, eufórico com a passagem dos Pirineus, telefonei para a Gládis, com o Bruno acompanhando a conversa na extensão. Depois, para relaxar, Ricardo e eu tomamos duas "cañas" de cerveja numa hospedaria simpática, simples e de muito bom gosto, onde mais tarde jantamos uma excelente truta com fritas, acompanhada de um bom tinto, e precedida de uma gostosa massa, como primeiro prato.

Tomei contato com o costume espanhol de ter às refeições, invariavelmente, um primeiro prato, normalmente uma salada, uma sopa, massa ou paella, e um segundo prato à base de carne de gado, porco ou peixe, e sobremesa.

Nossa mesa ficou composta pelo Ricardo, pela italiana Bárbara, dois rapazes alemães, um americano e eu. A comunicação se dava basicamente em inglês, mas também em francês. O americano não correspondia ao estereótipo, não era aquele tipo adiposo, cabelo cor de areia, pele rosada, camisa estampada, máquina fotográfica pendurada ao pescoço, querendo fotografar tudo. Era magro e elegante, cabelo e barba grisalhos, gentil e reflexivo, coisa que pude confirmar mais tarde em Larrasoaña, quando novamente jantamos à mesma mesa, e, depois, escovando os dentes, antes de dormir, quando até conversamos um pouco em inglês, o que foi possível com a compreensão e cordialidade dele.

Ponte e Calçada Romanas - Cirauqui

E tem mais:

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