Diário de um Magro

por  CARLOS ALBERTO

De Villafranca Montes de Oca a Burgos - 40 Km

A Santiago: 488 km


Domingo, 23 de Outubro de 2001

São 12 h e estou no Mesón Asador Las Cuevas, em Atapuerca, tomando um drinque e descansando os pés e o corpo.

Durante a noite passada em Villafranca Montes de Oca, acordei duas ou três vezes, tomei água do cantil, e antes das 5h já estava completamente desperto. Olhei pela janela e vi o firmamento com muitas estrelas. Bom sinal. Sinal de que a chuva se fora. Arrumei a mochila. Recolhi as roupas lavadas na noite anterior, já secas, pois as deixara secando sobre as lâmpadas de cabeceira.

Saí do Hostal às 6h15min, completamente escuro. Na véspera, tinha averiguado por onde seguia o Caminho. Apesar do céu estrelado, coloquei as perneiras e deixei a capa de chuva à mão. Abriguei-me com a jaqueta de nylon do Felipe, porque estava bastante frio e comecei a subir os montes de Oca, que eram tão perigosos para os peregrinos medievais segundo informa o guia. A subida é muito forte. Fiquei com receio de errar o caminho, o que não aconteceu porque a sinalização do caminho ali é bastante boa e a lanterna da Julinha iluminava muito bem. A subida dos montes de Oca se dá no meio do mato, mas não pude apreciar nada por causa da escuridão. Lembrei-me de quanto me faziam medo os caminhos ermos e escuros que andei trilhando quando criança.

Avancei firme e senti que no alto dos montes o frio era mais intenso. Nenhum problema, porque estava bem abrigado. Quando começava a amanhecer, deparei com o belo monumento aos caídos da Guerra Civil espanhola. A inscrição era em metal, com menção ao ano de 1936, e esta frase linda em conteúdo e forma: "No fue inútil tu muerte. Fue inútil tu fuzilamiento".

A subida deixou-me bastante cansado. Parei para uma pausa e comi uma banana. Fizera lanche à base de frutas e yogurt antes de deixar o Hostal.

Passei por um peregrino no caminho inverso mais ou menos uma hora antes de alcançar San Juan de Ortega, onde cheguei às 9h20min. A igreja local é dedicada ao santo, que tem ali seu mausoléu. O local é histórico, mas não passa de um vilarejo. Isabel, a Católica, procurou vencer a esterilidade vindo a este local, atraída pela fama de santo do religioso Juan de Ortega.

Tomei café no único bar perto da igreja e do albergue de San Juan de Ortega, que, apesar de ser um vilarejo, é final/início de etapa no guia El Pais. Ali fui abordado por alguém que, ao saber que eu era brasileiro, disse ser baiano. Falava muito bem o espanhol, portava viera (concha), mas fiquei em dúvida se era peregrino, ou algum baiano estabelecido em terras espanholas. Foi simpático, mas meu contato com ele foi muito rápido.

Deixei rápido o bar às 10h e ganhei a estrada. Só então dei-me conta que era domingo. Passei por uns "cotos privados de caza", onde havia gente caçando nas proximidades da localidade de Agés. Os espanhóis e seus impulsos primitivos ! Depois de passar por Agés, contemplando paisagens belíssimas, com algum registro fotográfico, parei em Atapuerca, com seus sítios arqueológicos capazes de recontar a história da presença do homem na Europa.

O proprietário do Mesón Asador Las Cuevas foi muito gentil e até me brindou com uma caneta esferográfica, dado que terminou a tinta da que trouxera de Porto Alegre. Todavia, o almoço só seria servido a partir das 13h30min. Enquanto espero, atualizo estas anotações e tomo um drinque, com vontade de ganhar a estrada e chegar em Burgos. São 21 Km desde Atapuerca, que espero engolir até a entrada da noite. Se não puder ficar no refúgio de peregrinos, vou para um Hostal.

Saí do restaurante por volta da 14h30min, satisfeito com a boa refeição, e comecei a subir com vontade a serra de Atapuerca. Vencida esta, lá do alto foi possível ver Burgos, aparentemente tão perto. Doce ilusão ! Descia a serra e Burgos nunca chegava, tendo inclusive desaparecido as torres da famosa catedral, possível de ver lá de cima e durante boa parte da descida.

Passei por vilarejos dos arredores de Burgos e resolvi chegar na cidade pela alternativa de Cascatear, ambiente mais rural, e não por Violaria, rota com mais asfalto. Na entrada de Burgos, parei uma meia hora, tirei as botas, tomei água e descansei. A caminhada em Burgos foi penosa por avenidas que pareciam nunca acabar. Já dentro da cidade, pedi informações sobre o acesso à catedral a duas policiais, que foram muito gentis. Chovia sem muita intensidade, o que me obrigou a colocar a capa, o que certamente deixou-me com um aspecto bizarro, porque as pessoas me olhavam muito.

Com a informação das policiais, caminhei pela avenida Arlanzón, que margeia o rio de mesmo nome, de águas muito limpas em meio à cidade. Quando nosso nível civilizatório for maior, certamente o arroio Dilúvio e o próprio Guaiba terão o mesmo tratamento. O caminho para a catedral passa pelo centro histórico de Burgos, que é de uma riqueza histórica e cultural notável.

Chegando à Catedral, estava tirando uma foto do monumento ao peregrino, quando um casal se ofereceu, e aceitei, para tirar uma fotografia minha junto à estátua. Formamos um interessante par !

Entrei na fantástica Catedral, cuja nave central está em reformas, e acompanhei uma missa em uma das naves laterais. O cansaço e o ambiente deixaram-me emocionados. No final, quando tratavam de fechar o templo ainda me deixava ficar por ali contemplando aquela beleza grandiosa. O padre veio me cumprimentar, quando se retirava. Referi meu cansaço e a condição de brasileiro. Foi muito gentil e mandou um abraço a Santiago.

Tirei algumas fotos. Estava tomando o rumo do albergue seguindo as flechas amarelas, quando no mesmo sentido iam as irmãs Cristina e Teresa, que não via desde a saída do refúgio de Grañon, apesar de elas terem dormido no Hostal El Pájaro, de Villafranca Montes de Oca, sem sair do quarto, segundo me falaram. São valentes essas brasileiras !

O albergue fica distante da catedral. Seguimos juntos, e a caminhada foi penosa pelo cansaço. Fica no bonito Parque Parral, já na saída de Burgos, cortado pelo rio Arlanzón.

Tomei banho, lavei roupas e, sem ânimo para ir a um restaurante, comi uma pêra como janta e tratei de dormir. Havia percorrido 40 Km desde Villafranca Montes de Oca e, assim, conseguira ganhar um dia em relação ao plano inicial de caminhada.

Saint Jean Pied-de-Port

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