Diário de um Magro

por  CARLOS ALBERTO

Madrid-Pamplona-Saint Jean Pied-de-Port


Quarta-feira, 12 de Setembro de 2001

Depois da demora no controle policial espanhol, dá-lhe procurar algo na imensidão do aeroporto de Barajas. A conexão para Pamplona seria às 16h35min, mas atrasou, só para variar, saindo às 17h. Esperei largo tempo na fila. Deu tempo até para perder 150 pesetas numa máquina tentando pegar uma mineral. É provável que não tenha sabido operar direito, mas a alavanca que desprenderia as moedas em devolução não funcionou, e o meu rico dinheirinho ficou retido.

Vôo rápido até Pamplona. Impressionantes as lavouras em campos da Espanha, sem cercas separando-as. É uma sucessão delas, de uma regularidade imensa formando uma paisagem contínua indutora da reflexão como o pampa e o mar. Não há florestas, matos ou mesmo caponetes naquelas paragens.

No aeroporto de Pamplona, tentei telefonar para o taxista Pedro Tellechea, cujo número levara do Brasil. Informação tomada com umas atendentes dali deu para perceber que o tal Pedro não é bem visto e benquisto pelos taxistas do aeroporto por praticar uma espécie de "dumping", concorrência desleal com os colegas do ponto, ao fazer preços especiais, notadamente para brasileiros. Mesmo assim, as moças deram-me números de telefones que, afinal de contas, j�� tinha. Não consegui ligação com o Pedro Tellechea, aparelho desligado ou fora da área de cobertura. O jeito foi tomar os serviços de taxista do ponto mesmo. Decidi ir com mochila e tudo até Saint Jean Pied-de-Port, por treze mil pesetas, que me pareceu um preço normal, de acordo com informações colhidas. Aparentemente, era o único peregrino, o que impediu a divisão da despesa do táxi.

No caminho, portunholei com o taxista basco de nome Andrés. Desculpei-me pelo deficiente espanhol, e o taxista foi gentil, disse que gostaria de falar português como eu falava espanhol.

Pamplona fica numa planura. O táxi começou a traçar montes, os pré-Pirineus, subindo, descendo e fazendo curvas. Estrada com asfalto de muito boa qualidade, com orientações de trânsito em espanhol e basco. Não vi qualquer casebre nos vários vilarejos, todas as construções parecendo muito sólidas e antigas, sem as aparências de pobreza tão comuns no Brasil.

Passados os pré-Pirineus e muitos vilarejos, testemunhas de uma história que vem de longe, começaram as subidas e descidas dos famosos Pirineus. A descida forte e as muitas curvas, que lembram passagens da serra gaúcha, me deixaram um pouco mareado, o que controlei com exercício de respiração.

Passamos por Roncesvalles, onde estaria no dia seguinte após cruzar os Pirineus a pé e com mochila. Devo confessar que a perspectiva de enfrentar aquelas montanhas assustou-me um pouco.

Chegando a Saint Jean, San Juan para o taxista basco, este dispôs-se a auxiliar-me na localização do albergue dos peregrinos. Preferi ficar na entrada da cidade e pedir informação aos nativos para começar a expor o meu francês à sua maior prova até agora.

Olhei o ambiente daquela cidade medieval e me dirigi a umas garçonetes de um restaurante. Aproximou-se uma senhora, que devia ser a proprietária. Deu-me a indicação da rua da Cidadela, informação que tive de completar com outras pessoas, porque as ruelas de cidades medievais têm algo de labiríntico. No trajeto, cruzei uma ponte romana constatando que em cidade como aquela tudo rescende a história.

Na rua da Cidadela fui ao número 27, como consta do guia, onde ninguém havia. Estava anoitecendo, e comecei a preocupar-me. Descia a rua um rapaz que me viu naquela procura e, certamente, pelo meu "look" perguntou em francês se eu era peregrino, prontificando-se a levar-me até a "maison d'acueil". Não seria essa a primeira amostra da tão falada magia do Caminho de Santiago, onde tudo acaba dando certo ?

Minha ansiedade pela incerteza da chegada, pelo desconhecido, ficou afastada naquele contato com o belga Alain, que levou-me até o refúgio. A partir daí, tudo funcionou, fui acolhido, passaporte de peregrino carimbado, com sorte de ficar com a última vaga disponível no albergue.

À noite, estranhei a cama, o ambiente, os roncos e demorei a dormir. As inquietações fizeram-me rolar na cama durante muitas horas. Acabei dormindo por força do cansaço, mas o sono era entrecortado.

Depois da recepção no albergue, o hospitaleiro, M. Georges, levou-me para conhecer a casa. Na cozinha, apresentou-me a um grupo de quatro pessoas, que estavam jantando: Mário, italiano, Bárbara, italiana, Hedwig, austríaca, e Ricardo, engenheiro de produção carioca, professor da UFRJ, morando em Paris com a família, onde cumpre programa de aperfeiçoamento profissional na Universidade Paris VI.

Como costuma acontecer no Caminho, convidaram-me generosa e enfaticamente para acompanhá-los na massa. A massa não estava lá essas coisas, mas o gesto e o clima entre as pessoas eram da melhor qualidade, e tornavam o prato saboroso com o molho da solidariedade. Tomei do vinho da região da Baixa Navarra francesa, da qual Saint Jean Pied-de-Port é a capital.

Durante o jantar, a conversa foi agradável, falei do RS, da colonização italiana, em consideração aos italianos, do gauchismo, da característica regional algo irredentista, da nossa importância na fixação das fronteiras meridionais do Brasil, e que os gaúchos somos brasileiros por opção, enquanto as outras regiões o são por determinismo geográfico. O italiano Mário lembrou e referiu o caso da região da Paduânia na Itália, com tendência separatista. Daí em diante, sempre que o italiano apresentava nosso grupo a outros peregrinos, falava que ele e a Bárbara eram italianos, a Hedwig, austríaca, o Ricardo era brasileiro, e eu, gaúcho independente, o que não me desagradava.

Depois da massa, já noite fechada, saí a caminhar na medieval Saint Jean, visitei a famosa "Citadelle", onde tirei algumas fotos estreando a máquina recém comprada em Free Shop de Barajas, que não sei no que vai dar por ser noite e não conhecer bem o aparelho.

As "cidadelas" eram o núcleo mais fortificado nas cidades medievais, em regra circundadas por fortalezas. Nas cidadelas, se protegiam os maiorais e suas famílias, quando havia ataques.

No alto do pórtico principal da fortaleza de Saint Jean, está escrito: "Bâtie par le Chevalier Antoine Deville au siècle XII et reaménagée par Vauban sous Louis XIV".

Na volta ao albergue, encontrei o italiano Mário que também tinha saído para dar uma caminhada e voltava subindo a rua da Cidadela, que lembra muito as ladeiras estreitas de Ouro Preto. Conversamos sobre o início da caminhada no dia seguinte, mostrou-me um esboço das alternativas de cruzada dos Pirineus, uma mais suave acompanhando a carreteira, por onde eu havia chegado de táxi, e a outra mais dura, a "route de Napoléon", mais radical, em que se cruzam os Pirineus pela parte mais agreste e alta. Eles já tinham optado por esta última alternativa, e Mário me perguntou se iria com eles. Fiquei de pensar durante a noite. Na verdade não pensei, e de manhã decidi-me por acompanhar aquele grupo pela "Route de Napoléon", já que a companheirada era muito acolhedora, simpática e solidária, como costumam ser os verdadeiros peregrinos.

Parque la Grajera - Logroño

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