Diário de um Magro

por  CARLOS ALBERTO

De Pedrouzo(Arca) a Santiago de Compostela - 20 km

A Santiago: 0 km


Terça-feira, 09 de Outubro de 2001

Neste 27º dia de caminhada, cheguei a Santiago de Compostela, com os companheiros do final da jornada, Luiz, Gisela e Servando, depois de ter iniciado esta fantástica experiência no dia 13 de Setembro, data do meu 52º aniversário.

Saímos do refúgio de Pedrouzo(Arca) de madrugada, às 4h40min. Acordei às 2h40min e não mais consegui dormir, um pouco pela ansiedade de chegar a Santiago e concluir essa aventura física e espiritual extraordinária, e um pouco porque um rapaz de São Paulo, no beliche ao lado, que conhecera no albergue durante a tarde, roncava muito forte e em diferentes tonalidades.

Às 4h15min, resolvi acordar meus companheiros. Tínhamos combinado na véspera acordar às 4h30min, o que permitiu ao Servando, tremendo gozador, dizer que eu estava certo: "cuatro y cuarto es mejor que cuatro y media". Gozações à parte, todos concordaram com a minha idéia de levantarmos cedíssimo para chegarmos a Santiago com tempo suficiente para a burocracia de final de peregrinação, instalação no albergue e missa do peregrino, inclusive com banho tomado.

Ao sairmos do albergue chovia intensamente, mas nada detinha a nossa determinação. Caminhamos firmes na escuridão chuvosa, com nossas capas e lanternas. Fizemos pequenas paradas para descanso quando a chuva havia cessado.

No Monte do Gozo, fizemos uma parada técnica demorada para um bom descanso e alimentação, depois de quatro horas de marcha, antes de alcançarmos a Catedral.

Como tinha dormido pouco, a certa altura do caminho meus passos eram os de um zumbi, tão sonolento estava. Mas acabou passando, à medida que a luz do dia chegava.

Depois do Monte do Gozo, na entrada de Santiago de Compostela, um arco-íris nos aguardava. Servando prontificou-se a fazer-me um registro fotográfico. Curioso que no começo da caminhada, na saída de Roncesvalles, também fomos brindados, meu bom companheiro Ricardo e eu, com bonitos arco-íris. Há quem diga que é um bom augúrio para o peregrino, tanto quanto o galo cantar na igreja de Santo Domingo de la Calzada, o que ele fez quatro vezes enquanto lá estive. Deus queira que realmente signifique algo bom!

Ao chegarmos à Catedral, estávamos todos algo atônitos e sem maior reação no início, em meio à multidão de turistas na Praça do Obradoiro. Logo, no entanto, a emoção tomou conta de nós, e nos abraçamos muito emocionados, com lágrimas nos olhos.

Feita a primeira visita à Catedral, fomos à secretaria do peregrino, que estava abrindo naquele instante, de sorte que nosso grupo foi o primeiro a ser atendido. O procedimento na secretaria é simples: duas moças examinam a credencial, fazem algumas perguntas, lançam a última certificação e emitem a compostelana na hora, facilidade possível porque o documento está impresso e apenas o nome do peregrino é manuscrito em latim.

Recebida a compostelana, fomos ao albergue, que fica no Seminário Menor, algo distante, para nos instalarmos, largarmos as mochilas e voltarmos à Catedral para a tradicional missa.

A missa foi bonita, mas, inexplicavelmente, o ambiente para recolhimento e reflexão foi prejudicado pelas fortes batidas dos trabalhos de restauração que a Catedral está recebendo numa de suas naves . Achei mesmo desrespeitoso com o peregrino não terem os responsáveis mandado cessar a barulheira tão prejudicial ao clima de recolhimento espiritual que deve permear um momento especial daqueles.

Finda a missa, fomos cumprir os rituais que vêm desde os peregrinos medievais: colocar a mão na coluna do Pórtico da Glória, e, semelhante à umbanda, bater a cabeça três vezes na cabeça da escultura, que seria a representação de mestre Mateo, autor da belíssima escultura, que é o Pórtico da Glória. Demos, também, o tradicional abraço por trás na escultura de Santiago, que está na abside da catedral e visitamos a cripta onde se conserva a urna que conteria os restos mortais do Santo. Fiz registro fotográfico dessa urna e da cerimônia do botafumeiro, prejudicado pela multidão presente. Vamos ver no que vai dar.

A Catedral de Santiago de Compostela é realmente magnífica, uma verdadeira orgia de pedras, segundo interessante expressão do guia El Pais.

Algo inexistente no interior da Espanha atual, havia vários esmoleres na Catedral, o que parece ser inevitável nos grandes centros, porque o mesmo pude reparar nas Catedrais de Burgos e Leon.

Cumpridos os rituais, Luiz, Gisela, Servando e eu fomos almoçar fora do "casco viejo", onde os restaurantes são muito voltados para os turistas tradicionais.

À tarde, o programa foi dormir no refúgio para recompor as forças e o sono deficitário da noite anterior. À noite, fomos levar o Servando à Estação Ferroviária, viajaria toda a noite para Madrid, onde faria conexão para Soria, antes de voltar para sua Cadiz natal.

Na volta ao albergue, fiquei pensando e comentei com o madrileno Luiz como são curiosas certas coisas do Caminho de Santiago, como a harmoniosa e agradável convivência de um grupo formado por criaturas com circunstâncias pessoais tão diferentes: Luiz e Gisela, militantes pacifistas e vegetarianos, com estilo de vida propositadamente alternativo, convivendo otimamente com duas pessoas convencionais, Servando, policial da Guarda Civil espanhola, instituição não muito bem vista, e eu, juiz aposentado e servidor público.

O Caminho de Santiago é um crisol que funde todos os significados, criando-os novos, enquanto refunda significantes.

Catedral - Astorga

E tem mais:

E tem muito mais ainda...