De Nájera a Grañon - 27,5 Km
A Santiago: 555 km
Sexta-feira, 21 de Setembro de 2001
Dormi bem à noite. Levantei, como sempre, com muito vontade de pegar a estrada. Arrumei as coisas, fiz um pequeno lanche e saí ainda escuro, procurando as flechas amarelas com o auxílio
da lanterna da Júlia. Sem ela, poderia ter errado o caminho. Deixei Nájera muito disposto, caminhei com muita vontade e parei em Azofra para tomar café. Outros caminhantes, inclusive uns catalães tagarelas fizeram o mesmo.
Saímos juntos do bar, mas logo depois tomei a dianteira. Imprimi ritmo regular e constante.
Pouco antes de chegar em Santo Domingo de la Calzada, alcancei a austríaca Hedwig, que conheci no início em Saint Jean Pied-de-Port.
Depois de Larrasoaña não a tinha visto mais. Ficara no albergue de Azofra e não em Nájera, e também não havia chegado em Pamplona, pernoitando em Cizur. Parece que evita os locais de maior movimento e dorme em albergues intermediários.
Hedwig estava bem mais magra e se queixava de fortes dores nas costas. Abraçou-me afetuosa e efusivamente, o que não costuma ser comum nos germânicos. Disse-me que iria ficar em Santo Domingo de la Calzada. Toquei em frente,
deixando Hedwig para trás. Meu plano era almoçar em Santo Domingo e tocar até Redecilla del Camino, albergue intermediário, para adiantar a etapa seguinte.
Deixei a mochila no refúgio de Santo Domingo e fui ao Correio
para postar alguns cartões para o Brasil, à igreja do galo famoso, onde descansei um pouco e depois almocei peixe com legumes e vinho num restaurante chamado Rio.
Na igreja, um peregrino, ao que parece italiano e meio
maluco, reclamava do fato que a visita à nave central era paga e guiada. Não dei bola, mas ele se dirigiu a um jovem casal e a um velho com aquela reclamação, dizendo que a Europa só havia conhecido dois gênios, Mussolini,
que organizara a Itália, e Franco, a Espanha. Que se Franco fosse vivo não aconteceria aquela monstruosidade de os padres receberem dinheiro para mostrar a igreja. Intimamente até concordei com ele nesse aspecto, mas o fascismo
explícito me predispôs contra o peregrino italiano e maluco.
Depois do almoço e de descanso, peguei minhas tralhas e toquei para a estrada. Estava muito cansado e os pés doíam muito na altura dos calcanhares, o que se
acentuava pelo fato de que parte do caminho era por asfalto, o que torna tudo mais difícil. Eram as famosas bolhas se manifestando.
Ao chegar em Grañon, encontrei, descansando, dois ingleses que também iam dormir em
Redecilla del Camino. Logo que saíram e que eu me preparava para continuar, começou a chover. Hesitei, mas resolvi ficar ali mesmo em Grañon, onde também estavam chegando para pernoitar as irmãs Cristina e Teresa. Cristina
caiu na chegada ao albergue e cortou a boca, internamente.
No refúgio já estava um dinamarquês, a quem já havia encontrado antes de Pamplona, próximo a Zubiri, e que é um sósia perfeito do Lenin. Contou-me que quando
esteve em Moscou, as pessoas, principalmente crianças, ficavam de boca aberta olhando para ele, na rua, tal a semelhança.
Foi sorte aquela chuva ter-me obrigado a parar em Grañon, onde o albergue funciona junto à igreja,
e o padre é o hospitaleiro. O homem é muito bondoso. Transparece sua virtude. Dormimos em colchonetes no chão, os últimos a chegar ao refúgio: as brasileiras, um casal belga muito jovem, duas criaturas simpáticas e bonitas,
com não muito mais de 20 anos. Conversei bastante com os belgas, que revelaram, ouvindo Cristina, Teresa e eu, que lhes era muito agradável aos ouvidos ouvir nosso português.
Depois do banho, enquanto a janta era preparada
pelo padre e seus auxiliares, adormeci e fui acordado simpaticamente pela jovem senhora belga, avisando que a janta já seria servida. Inicialmente agradeci, tinha feito lanche ao chegar e não pretendia jantar, mas, após, não
resisti à ocasião de compartilhar aquela mesa. Mudei de idéia e subi para saborear uma sopa de alho e macarrão bem gostosos, ao que parece preparados por um senhor auxiliar do padre. Foi bom ter mudado de idéia, porque à mesa
estavam uns quatro casais franceses, pessoas já maduras, gente muito boa, bascos de Bayonne.
Quando chegara ao albergue, após o banho, percebi que aquela dor no calcanhar era bolha. Tratei na forma recomendada, mas a
localização bem na curvatura do calcanhar e da planta do pé esquerdo dificultava a colocação do comede. Depois da janta e de muita conversa, a familiaridade que se criou no ambiente tornou natural que uma francesa, enfermeira
aposentada e trabalhando como "bénévole" com sem-tetos na França, revisasse e fixasse melhor o compeed com esparadrapos.
Digna de registro, denotadora da bondade e sabedoria do padre, a seguinte frase na caixa de contribuições:
"contribuye con lo que puedes ou retira lo que necessitas". Falando em frases, acho que antes de Grañon uma placa no caminho trazia isto: "Voy donde sea, desque que sea siempre adelante". Repercute bem nos ouvidos e no coração
de quem está no caminho.
Depois da janta, houve oração conjunta na igreja e em seguida dormi direto, não sem antes emprestar a lanterna da Júlia para a Teresa procurar sua máquina fotográfica que havia esquecido num
banco do templo.