No Caminho de Santiago de Compostela: significados e passagens no itinerário comum europeu

por Sandra M. C. de Sá CarneiroNov 14th, 2001

Sandra é professora, pesquisadora e peregrina (UERJ/UFRJ - Brasil). Esse estudo foi apresentado na IV REUNIÃO DE ANTROPOLOGIA DO MERCOSUL - Curitiba, Paraná, Brasil, de 11 a 14 de novembro de 2001.

No momento em que as grandes utopias do século XIX revelaram sua "ineficácia", parece urgente criar condições para um trabalho coletivo de reconstrução de um universo de ideais. Neste cenário, é interessante verificar como o ideário de "transformação social e pessoal", ganha centralidade, ao ser definido como o primeiro passo para mudanças mais gerais e, ao refletir o "espírito de um novo tempo", que por vezes retoma elementos de um passado que se supunha superado, influenciando determinados grupos sociais.

Desta deste contexto, é importante pensar a questão da crise real ou aparente de sistemas, instituições e agências tradicionais produtoras de sentido, não tanto a partir de uma análise do que está agora acontecendo nelas, mas sim, através de uma reflexão a respeito do que está ocorrendo no campo das reciprocidades sociais e simbólicas onde se articulam (Velho, 1998).

Esta situação complexa tem indicado a emergência de uma nova modalidade de religiosidade, uma maneira de os indivíduos se religarem com a vida, com a história e, fundamentalmente, consigo mesmo. Uma perspectiva cuja "eficácia" está na produção de novos sentidos, pertinência, novas direções de mudança e de valores básicos da vida social.

Tendo essas questões como fundo, nos últimos anos realizei um estudo mais amplo, em que busco compreender o problema do "experimentalismo religioso" ou da errância religiosa" como uma das novas condições da existência espiritual e religiosa na sociedade contemporânea, sustentando como faz Soares (1989), que a experimentação é a idéia matriz da chamada "cultura Nova Era", face aos modelos morais e religiosos da modernidade. Se, como indicavam algumas análises, é o sujeito que se identifica como o local de síntese, às voltas com suas aproximações e afastamentos, escolhas e mediações, ao tentar incorporar suas diferentes experiências na busca constante de seu auto-conhecimento, fazendo uniões e junções que aparentemente poderiam ser consideradas as mais disparatadas, seria importante explorar determinadas trajetórias de vida visando a reconstituição e o entendimento desse novo tipo de sincretismo em movimento, como bem definiu Amaral (2000).

A partir dos resultados desse trabalho, que tinha como eixo central a análise de trinta histórias de vida, tive a atenção voltada para um caminho espiritual, que apareceu numa das trajetórias analisadas. Assim, na presente comunicação discuto como o Caminho de Santiago de Compostela, inscrito no contexto da cultura da Nova Era, vem-se tornando bastante significativo junto a um segmento social específico (camadas médias urbanas), levando os indivíduos a reestruturarem seus ethos,, visões de mundo e estilos de vida, em decorrência, sobretudo, da produção de sentido e de pertinência experimentados durante a peregrinação.

Meu objetivo principal é interpretar o conjunto de crenças e de valores que estão associados às atividades, ações e práticas vivenciadas por aqueles que percorrem o Caminho e, mostrar, como o ideário de transformação pessoal e social, base do projeto de autoconhecimento, pode-se tornar um importante recurso cultural, com alta densidade simbólica, ao produzir novas formas de ação e de expressão para determinados indivíduos.

Circunscrevo basicamente a minha análise aos significados do Caminho e seus aspectos rituais. Portanto, sobre um conjunto de manifestações simbólicas inscrito na ordem da significação, capaz de ser lido, revelado e interpretado.

Sustento que este ideário emerge no contexto do que vem sendo denominado de Nova Era (1) , onde diversas experiências, práticas e vivências, marcadas por uma linguagem singular (onde trafegam bens, signos e símbolos com forte conotação "religiosa"), indicam mudanças de orientação, comportamentos e valores em esferas importantes da vida social. Como por exemplo, nas relações das pessoas com o "sagrado", nas suas inserções no mundo do trabalho, nas suas relações familiares, em suas relações com o cotidiano da vida, influenciando na maneira das pessoas "construírem seus mundos".

Como pretendo mostrar, este ideário tem como substrato o desejo de mudança, tanto do próprio eu, como da sociedade e, particularmente das relações sociais. Portanto, seria um equívoco reduzir o significado das experiências particulares a uma só interpretação. Assim, entendo a peregrinação como um "fluxo de discursos em disputa", no qual o mundo de cada pessoa (pessoal, social, cultural, etc) influencia o que ela acha, valoriza, critica ou rejeita.

Singularidades do Caminho

Considerada uma das romarias mais tradicionais do Catolicismo, ao lado de Roma e Jerusalém, o Caminho atrai, a todo ano, um número significativo de pessoas(2), de diferentes nacionalidades, que iniciam a peregrinação em diversos locais da Europa. Constituindo-se assim, em um fato social de importância indiscutível, não só por sua dimensão simbólica, como também pelo amplo sistema de relações sociais, econômicas, políticas e religiosas que mobiliza em torno de si.

Uma das principais características do Caminho de Santiago é que diferentemente dos outros centros de peregrinação europeus populares, como Fátima (Portugal) ou Lourdes (França), cuja devoção por uma maioria católica, está centrada na Virgem Maria, os atos rituais essenciais dos peregrinos de Santiago de Compostela não ocorre dentro das fronteiras sagradas da igreja, ou em seu contorno. A ênfase na viagem e, em como se alcança a igreja (a pé, de bicicleta ou a cavalo) marca a diferença, assumindo um significado especial. A longa jornada tem duplo aspecto - físico e espiritual.

Enquanto os principais centros católicos voltados à devoção Mariana (Lourdes, Fátima, Guadalupe e Medjugorje, na Bósnia) se baseiam em milagres ou aparições que ocorreram depois de 1850. A peregrinação a Santiago se baseia numa tradição que se afirma remontar à fundação do cristianismo.

Minha hipótese central é a de que a principal força de atração do Caminho está justamente em sua capacidade de incorporar a diversidade do campo católico e responder também a outras demandas, "religiosas" ou não, que são levadas para este lugar considerado "sagrado".

O Caminho se transformaria assim, em palco de disputas em torno dos sentidos do sagrado, onde se confrontam diferentes discursos, particularmente, dos peregrinos "tradicionais" (que seguem a tradição católica) e daqueles que visam, sobretudo a "transformação pessoal", embora estes não sejam os únicos, nem são excludentes entre si.

O Caminho, no entanto, não é apenas uma metáfora da transformação pessoal e social. Seu principal significado está na forma como esta experiência afeta cada pessoa de forma única e particular, apesar das regularidades e constâncias que podem ser encontradas. Neste sentido, acredito que a forte mobilização em torno do Caminho está relacionado, sobretudo, à sua flexibilidade, ao seu hibridismo, capaz de acomodar várias interpretações de seus espaços e encontros.

Ao descreverem os motivos que os levaram a fazer o percurso, os peregrinos conferem-lhe significados, infundindo-lhe emoção a partir de uma experiência singular. Mais do que uma peregrinação de cunho aparentemente religioso, resistente às inovações e reformas do catolicismo, como consideram algumas análises, acredito que a atual peregrinação à Santiago de Compostela se revela como um evento "reinventado" em diferentes momentos e formas por seus agentes.

Universo da Pesquisa

Meu material de pesquisa vem sendo constituído a partir das seguintes fontes: a)entrevistas em profundidade com indivíduos que pertencem a Associação dos Amigos de Santiago de Compostela no Brasil; b) síntese dos aspectos recorrentes nos trinta e seis (36) livros escritos e publicados, até o presente, por brasileiros que fizeram o Caminho, levantando os principais temas, idéias recorrentes, valores expressos, imagens e impressões; c) análise dos temas recorrentes, das trocas, dos intercâmbios entre os peregrinos que frequentam o principal grupo de discussão sobre o Caminho no Brasil; d) trabalho de campo na rota jacobea, para realizar entrevistas in loco; e) levantamento junto aos Centros de Documentações existentes na Espanha sobre o Caminho; f) entrevistas em profundidade (como controle) com pessoas que fizeram o Caminho mas que não pertencem à Associação de Amigos de Santiago de Compostela no Brasil.

Ao analisar as narrativas construídas em torno desta experiência, busco interpretar:

a) o seu significado social; b) os principais motivos que levam um número cada vez maior de brasileiros a fazer uma rota de peregrinação de mais de 800 km, situada no norte da Espanha; c) a construção de uma nova categoria de "peregrinos" que se expressa através de uma linguagem particular, constituída por uma extensa rede de significados e de práticas sociais e, c) os signos e símbolos associados a esta linguagem , que ordena a história pessoal dos modernos peregrinos.

A partir destes dados busco traçar o perfil socioeconômico dos peregrinos brasileiros (3) ,comparando-os com os dados gerais disponíveis, apreender suas motivações em relação ao interesse em fazer o Caminho de Santiago e discutir o sentido social atribuído às experiências antes, durante e depois de realizado o percurso. Interessa-me sobretudo, desvendar em que medida estas experiências levam aos agentes sociais a re-elaborarem suas visões de mundo, estilos de vida e suas práticas sociais.

Abordo também algumas questões relativas à criação de uma rede nacional e transnacional entre os peregrinos de Santiago de Compostela, destacando sobretudo a circulação de conceitos, valores e definições de tradição e de realidade.

Este objeto tem me levado a rever alguns dos fundamentos da prática etnográfica, na reformulação epistemológica de uma noção clássica da Antropologia: a definição do campo de pesquisa restrito a uma realidade local bem delimitada.

Os contatos cada vez mais freqüentes entre os peregrinos (ex e futuros) de todo o mundo através de sites e homepages, leva-os a um intenso intercâmbio de idéias, valores e modelos comportamentais, de trocas simbólicas dos mais diversos tipos, sugerindo a aplicação da noção de "rede" para explicar as modificações atuais do campo religioso.

Privilegio a descrição da experiência da peregrinação, das narrativas e do ethos daqueles que se põem no Caminho e, que repetem ritualmente o dinamismo da Historia da Salvação, com uma meta específica: a catedral de Santiago de Compostela - lugar onde se veneram as relíquias de um dos apóstolos de Jesus de Nazaré.

Ao que tudo indica, o peregrino brasileiro é um viajante animado por motivações que vão mais além de uma viagem turística, de uma curiosidade intelectual, etc. Abandona sua familia temporariamente para empreender uma viagem que o levará ao lugar de um encontro nada banal, que transborda sua cotidianeidade.

Em certa medida, podemos reiterar a idéia de que foram os escritos dos pensadores medievais, o suporte espiritual a partir do qual se estruturou a peregrinação jacobea.(4)   No entanto, no caso específico deste trabalho, a questão é perceber de que maneira os inúmeros livros nacionais escritos sobre o Caminho (5) , funcionam como suporte ao projeto de seguir em rumo à Santiago de Compostela?

Atualmente existem dezenas de Associações de Amigos do Caminho de Santiago de Compostela em todo mundo, reconhecidos pela "Xunta de Galícia" e, centenas de homepages , chats e grupos de discussão, com a finalidade de promover a troca de experiências e vivências, bem como auxiliar as pessoas motivadas por fazer o caminho.

Em minha pesquisa mais ampla, venho acompanhando as práticas e ações das Associações existentes no Brasil, bem como a mais antiga lista de discussão e homepage existente sobre o Caminho (www.caminhodesantiago.com.br).

Através deste recurso metodológico, tenho procurado analisar a circulação de uma série de temas, conceitos, valores e definições em torno do Caminho, numa rede nacional e transnacional que une peregrinos de todo mundo e, em particular, de todo o Brasil.

Esta rede, que prega a universalização do Caminho, parece priorizar a apresentação do Caminho à Santiago de Compostela como um caminho espiritual, um caminho de transformação e de auto conhecimento.

Ao que tudo indica, esta rede de comunicação reproduz uma outra rede, que constitui uma das características do chamado "movimento Nova Era".

Michael York (1975) , tem utilizado a noção de rede para analisar a "nebulosa do New Age". Uma das características deste modelo seria a sua essência fortemente segmentada, com múltiplos centros ligados por uma terminologia comum e um mesmo núcleo de idéias básicas.

Mas, se é verdade que a rede internacional, que une os peregrinos brasileiros, franceses, espanhóis, alemães, etc. possui múltiplos centros, ligados aos distintos modelos de peregrinação, é também verdade que eles são unidos por um conjunto de crenças e atitudes semelhantes.

Neste sentido, até que ponto podemos constatar uma verdadeira homogeneização cultural na imagem veiculada pelos peregrinos do Caminho de Santiago de Compostela nestes fóruns internacionais?

Em que medida também, podemos falar do mundo ou do universo do Caminho de Santiago, uma vez que estamos lidando com redes sociais e "padrões de ação coletiva" que permitem o exercício concreto desta prática?

Até o presente momento o que a pesquisa tem demonstrado é que temos aí matrizes discursivas recorrentes e, que é inegável, que um conjunto de comportamentos, produtos, valores e símbolos associados a esse universo começa, pela sua recorrência, a conformar um padrão.

Apesar da presença e da influência da religião católica no universo do Caminho, esta certamente não representa o seu dado mais marcante. A dimensão da espiritualidade e da transcendência ganha centralidade, independente da origem cultural dos peregrinos. Sendo uma constante nos discursos e nas práticas, desde uma versão mais soft, de enlevamento proporcionado pela contemplação da natureza, por exemplo, até experiências de ordem mística.

Os conceitos de transformação, de auto-conhecimento, de terapia, também predominam nos discursos, como uma língua franca que indica a comunicação entre peregrinos de diferentes nacionalidades e contextos sociais específicos.

O Caminho e a tradição

Durante o percurso, os peregrinos reinventam a tradição milenar. (6) Acredito que é justamente, em decorrência da articulação entre tradições tão distintas que convivem e se

reforçam mutuamente, no diálogo entre o conteúdo mítico e o conteúdo das experiências vividas com dramaticidade emocional, que o ritual ganha densidade e se diversifica, compondo a pluralidade polifônica e multifacetada de seus discursos e rituais.

A peregrinação é entendida como uma ação que alarga as "fronteiras" pessoais e sociais e cria uma rede de comunicação alternativa. Cada peregrinação é vivida como uma performace do drama da transformação pessoal.

Nas palavras de uma informante " Percorrer a pé o Caminho de Santiago de Compostela é vivenciar uma experiência de autoconhecimento considerada bastante difícil e arrojada".

Entretanto, qualquer que seja a "coerência" da lógica simbólica expressa nas práticas de busca do auto-conhecimento, essa perspectiva não explica porque um grande número de pessoas toma parte nestas práticas, ou como tais práticas se tornam públicas. Não conseguindo explicar igualmente as formas específicas que as pr��ticas de auto-conhecimento públicas parecem assumir, onde quer que ocorram.

A peregrinação é assim, um meio de se evocar a tradição, na medida em que os atores acionam referências religiosas, práticas rituais e símbolos que foram acumulados em torno do Caminho. Entretanto, ao que tudo indica, hoje, estas são reapropriadas e rearticuladas para socializar suas idéias e comportamentos através de outros discursos.

Desta forma, a peregrinação é também um meio através do qual seus participantes fazem contato com o núcleo da sua cultura, lançando mão de novos valores e recriando a tradição, o que configuraria um determinada visão de mundo.

Convém ressaltar que qualquer evento se desdobra simultaneamente em dois planos: como ação individual e como representação coletiva. Ou melhor, como lembra Sahlins (1994) como a relação entre certas histórias de vida e uma história acima e além dessas outras. Por outro lado, a multiplicidade dos discursos em torno do Caminho é condição da sua própria existência. Acredito que é justamente tal possibilidade de compatibilizar diferenças e de responder a demandas diversas que torna o Caminho acolhedor e com abrangência internacional.

A tradição associada à rota Jacobea é, portanto, continuamente reinventada pelos peregrinos, hospitaleiros, igreja e membros de diferentes associações de amigos do caminho, como um forma de legitimar valores, códigos, ações, práticas que cada uma destas categorias considera centrais dentro de suas redes de convenção.

O Caminho como ritual


Os sentidos da peregrinação

Peregrinar é sobretudo buscar e busca-se movido pelo desejo de fazer realidade plena nossa existência. Neste sentido, ao que tudo indica a vivência é única e intransferível.

A princípio, toda peregrinação implica numa tríplice estrutura: um homem que transita por uma rota; uma meta, escolhida por sua relação com o sagrado; e uma motivação para encontrar-se com a realidade misteriosa e invisível. Inseparável da arte de viajar, está o anseio de romper com os hábitos da nossa vida comum, e de se afastar pelo tempo necessário até ver realmente o mundo em casa, e de se afastar pelo tempo necessário até ver realmente o mundo ao seu redor. Para a maioria dos informantes, "caminhar, andar é a melhor forma de sair da mente".

A peregrinação é comumente vista como uma busca universal do eu. Embora a forma da trilha mude de cultura para cultura e das diferentes épocas da história, um elemento permanece o mesmo: a renovação da alma (Cousineau, 1999).

A finalidade expressa da peregrinação é tornar a vida mais significativa. Pela viagem sagrada, as pessoas podem encontrar o caminho do divino, a fundamental fonte da vida. A essência do caminho sagrado é traçar uma rota sagrada de testes e escolhas, provações e obstáculos, a fim de chegar a um lugar sagrado e tentar alcançar o segredo do seu poder. Por meio da partilha desse território sagrado que as pessoas chegam não somente a descobrir a idéia de sua origem e o seu destino, mas a de ter experiências daquilo que revela o significado de suas vidas. Um processo de despertar e se transformar que precisa ser experimentado diretamente, o que cada um terá de fazer por si mesmo.

Como Cousineau (1999), citando Otavio Paz nos lembra, a experiência e o caminho do sagrado são similares porque elas jorram da mesma fonte. Essa fonte é o desejo. Desejo profundo de ser outra coisa, diferente daquilo que se parece ser. Assim, "a verdadeira jornada é feita com fé e a pé".

Como tem sido ressaltado por muitos antropólogos, os rituais marcam o tempo, organizam o espaço - duas maneiras de definir o que queremos dizer com o sagrado. Assim como temos de estar atentos para identificar a fonte do nosso desejo, também é importante para o viajante ver claramente como e quando realizar a viagem.

Como a grande maioria dos entrevistados ressaltou, "durante o percurso se tem uma relação diferente com o tempo, uma liberdade de pensamento que não se tem em casa - ou que não se permitem em casa, onde somos sobrecarregados de relações e de responsabilidades."

A tônica que marca os discursos "é a menos que você deixe espaço para o imprevisto, como pode o divino entrar em você"? O começo da aventura de "encontrar a si mesmo está em perder o caminho", ou ainda como está no título de um dos livros brasileiros sobre o Caminho, "Perdi meu roteiro, encontrei meu caminho". A filosofia fundamental da peregrinação poderia assim ser resumida: o clímax do ritual é alcançado quando se descobre que "você não é você", por identificação com o outro e não com o ego. Ou melhor, com uma natureza ainda não definida pelos códigos da cultura e da sociedade. Esta moralidade do constante "tornar-se" como valor está sempre presente.

A lendária hospitalidade e a reconhecida consideração conferidas aos peregrinos também contribuem para o sentimento de prazer e gratidão que cercam a aventura. Em toda parte, o caminho dos peregrinos é duplo, exterior e interior, contendo o movimento dos pés e da alma no tempo e no espaço.

O sentido do sagrado despertado no Caminho revela a realidade que tem o poder de transformar as vidas. Seja lá o que for essa realidade: uma deidade, a base do ser, o vazio, o inconsciente, o self, a natureza, o absoluto - o encontro com ela liberta quem a encontra das concepções formuladas pelo ego. O despertar de um sentido de sagrado, torna as pessoas conscientes de uma realidade mais profunda e de uma vida mais significativa. Ajudando-os, segundo os informantes, a "varrer vários conceitos, valores e preconceitos", "despertando novas percepções e uma nova consciência". O indivíduo transformado em self desrespeita fronteiras sociais e reencontra a humanidade.

A idéia da metáfora da peregrinação como sendo uma jornada com um propósito, também é recorrente nos discursos. Além disso, acredita-se que a "peregrinação celebra a identidade pessoal", "conduz à definição de nós mesmos". Tendo o "efeito milagroso" de apagar pecados.

O círculo completo é um símbolo da alma - uma imagem da totalidade - e o fim da jornada é tornar-se novamente um todo. A arte da viagem é a arte de "ver o que é sagrado".

O importante da peregrinação "é aperfeiçoar a si mesmo enfrentando as dificuldades que surgem". Desta maneira, todas as jornadas são rapsódias sob o mesmo tema da transformação e da descoberta do self..

Neste sentido, os elementos de identidade com a peregrinação, freqüentemente acionados pelos entrevistados, não são regidos somente pelo particularismo católico, mas sobretudo por valores e práticas centradas no ideário de transformação e, no compromisso social com o próximo, numa profissão de fé que é traduzida no ethos perregrino, no Estas experiências são assim, bastante significativas para os indivíduos, levando-os, por vezes, a expressar sentimentos de renovação física, espiritual, pessoal e social - eis porque alguns peregrinos referem-se ao trajeto como Caminho da transformação.

Ao retornarem às suas vidas cotidianas, muitos expressam o desejo de tomarem uma decisão, de agirem, ou de serem menos materialistas, de serem mais generosos com os outros, de trazer sua vida espiritual para a prática do dia-a-dia. Outros tomam decisões mais radicais - deixar o emprego, mudar de profissão, se mudar, ou alterar uma relação . A confiança e a força que vêm durante o percurso levam muitos a quererem levar estes sentimentos para a vida diária. Muitos experimentam desapontamentos, todos se sentem tocados, ninguém é indiferente à experiência.

Nesta perspectiva os elementos de identidade com a peregrinação, freqüentemente acionados pelos peregrinos, não são regidos somente pelo particularismo católico, mas sobretudo por valores e práticas centradas no compromisso social com o próximo, numa profissão de fé que é traduzida no ethos peregrino, no ser peregrino.

Finalizando, vemos que dentro deste panorama, o valor da experiência é exacerbado, convertendo-se no critério supremo e determinante de um novo tipo de religiosidade, ou melhor, de uma "nova consciência religiosa". Onde ganham centralidade e se sobressaem as vivências e práticas, o experimentalismo, a expressão das emoções, intuições, crenças difusas e místicas capazes de promover o auto-conhecimento e o bem-estar. Enfim, talvez faça parte do "espírito da época" (Velho, 1999) repensar o individual e o coletivo, o sagrado e o profano, a religião e a magia, as dimensões objetivas e subjetivas da vida social, em novas bases.



Referências:



(1) Tenho consciência da dificuldade de conceituação do têrmo Nova Era, ou melhor, da dificuldade de se encontrar um termo que possa abranger, sem controvéria, um cultura religiosa descentralizada e errante, em um campo onde diferentes discursos se cruzam e diversas áreas da vida social se misturam. No entanto, para nomeá-lo, mantenho o termo Nova Era porque ele surge no movimento histórico que , nos anos sessenta e setenta, tornou visível essa cultura religiosa, cuja forma de expressão espiritual tem sido dominada pela metáfora da "transformação" e pelo experimentalismo religioso. No entanto, até hoje não existe um termo comparável que aborde todos os aspectos da cultura religiosa em questão (Amaral, 2000). Por isto, para efeitos deste trabalho, sigo a definição utilizada no New Age Encyclopedia, para o qual o Movimento Nova Era pode ser definido por sua experiência de transformação. Seus adeptos têm experimentado ou estão diligentemente procurando uma profunda transformação pessoal, de uma vida antiga e não acitável para um novo e interessante futuro. (Lewis, apud Melton, 1992:07).



(2) Segundo os dados disponíveis pelo Registro de la Oficina de Acogida de Peregrinos de Santiago de Compostela, a peregrinação cresceu vertiginosamente nos últimos dez anos, sendo expressivo o número de peregrinos oriundos do Brasil, que ocupa o terceiro lugar entre os povos que mais realizam a peregrinação à Santiago. As estatísticas gerais referentes a este período revelam que, a partir de 1990, houve um aumento bastante expressivo de peregrinos (1990 - 4.918; 91 - 7.274; 92 - 9.764; 93 - 99.436 (Ano Santo); 94 - 15.863; 95 - 19.821; 96 - 23.218; 97 - 25.179; 98 - 30.126; 99 - 154.613 (Ano Santo); 2000 - 55.004).



(3) Por intermédio da Associação Brasileira dos Amigos de Santiago de Compostela, examinei as fichas daqueles que solicitaram e receberam a credencial de peregrino. Através desse instrumento é possível delinear a seguinte composição socio-econômica dos peregrinos brasileiros: 90% fizeram o caminho a pé e 10% de bicicleta; 60% eram mulheres e 40% homens. A idade média é de 40 anos. Predominando aqueles que tem alto nivel de escolaridade, quanto comparados com a média de brasileiros em geral, a grande maioria tem curso superior (80%) e é expressiva a participação daqueles que desempenham profissões liberais - advogados, médicos, arquitetos e engenheiros, predominando os analistas de sistemas. A maioria é proveniente de áreas urbanas e das grandes capitais brasileiras como : Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Recife, Brasilia, Curitiba e Rio Grande do Sul.



(4) Entre os séculos XI e XV, o trânsito intenso de peregrinos transformou Compostela no mais importante centro político e econômico do norioeste da Espanha. Em 1135, surge a primeira obra sobre o Caminho de Santiago de Compostela, que se tornou o principal guia para os peregrinos. O padre francês Aymeric Picaud escreve uma crônica de viagem contendo informações detalhadas sobre a peregrinação. A obra completa de Aymeric, uma homenagem de cinco volumes sobre São Tiago e intitulada Liber Sancti Jacob, foi dedicada ao Papa Calixtino e, por isso, passou à História com o nome de Códice Calixtino. O guia do peregrino, como ficou conhecido combina inspiração e referências úteis, e hoje é visto como o protótipo dos modernos guias de viagem.. Durante a Idade Média, ir em peregrinação a um lugar sagrado tornou-se prática imensamente popular, e essa foi, a seu modo, o antepassado do turismo moderno.



(5) Um aspecto importante de ser destacado é que, embora fazer a peregrinação seja sempre uma decisão pessoal, ela pode estar marcada pela influência de vários fatores, especialmente mediados por aqueles que já viveram esta experiência. A maioria dos entrevistados até o momento mencionaram que tiveram conhecimento do Caminho através da leitura do livro " O Diário de um mago", escrito por Paulo Coelho e publicado no Brasil em 1986. Hoje existem mais de cinquenta livros escritos por brasileiros. Outro fator mencionado com bastante frequência são os programas especiais que foram realizados sobre o Caminho. Sobretudo, os que foram produzidos pela Globo, que concentra a maior audiência de telespectadores do Brasil. Este canal produz semanalmente um programa denominado Globo Reporter, onde foi apresentado dois programas especiais sobre o Caminho. Nos últimos três anos pelo menos cinco programas foram produzidos pela televisão brasileira sobre o Caminho - dois apresentados pela Globo, um pela SBT, outro pela Rede Vida (canal religiosos) e por último, um programa produzido pelo Saúde&Alternativa, do GNT. Somado a isto é cada vez mais frequente o número de pessoas que relatam suas experiências em forma de livros, que passam a constituir importantes fontes de referência.



(6) O termo "tradição inventada" é utilizado num sentido amplo, mas nunca indefinido. Inclui tanto as "tradições"realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar num período limitado e determinado de tempo - às vezes coisa de poucos anos apenas - e se estabeleceram com enorme rapidez. Por "tradição inventada"entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. ( Hobsbawn e Ranger, 1997: 09).



Bibliografia de referência:

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