Grandes Lições do Caminho

por Antoin Abou Khalil


Quando um peregrino se dispõe a falar de sua vivência no “caminho”, não importa que traçado geográfico tenha tido ele se termina em Santiago de Compostela ou em Aparecida do Norte, é comum alguém perguntar: qual foi a lição que você tirou de sua experiência?

Paradoxalmente, embora o caminho proporcione muitas lições, parece muito difícil falar disso em poucas palavras, ou ainda, em palavras... Quando lembro do Caminho, experimento a sensação de completude e, junto com ela, vem-me um sentimento de gratidão profunda por tudo o que me foi permitido viver no curso de minha jornada, e o quanto for possível disto é o que me disponho a agora compartilhar com você.

Trilhei o Caminho de Santiago no mês de SET/01, e tive como ponto de partida o vilarejo de Saint Jean Pied-de-Port, no sul da França. Junto comigo caminhava Pascal, meu irmão. Ele havia lido uns dois ou três livros antes da viagem, e eu outros tantos. Já sabíamos, portanto, que para percorrer as rotas que nos levariam a nosso destino, era preciso seguir na direção apontada pelos sinais do Caminho, normalmente representados por setas amarelas. Simples, não? Pois bem, nosso primeiro dia de caminhada foi simplesmente um monumental desastre em termos de “execução”, pelo fato de não termos prestado atenção suficiente às indicações do Caminho.

Assim, a primeira lição que colhemos foi a de ser necessário olhar e enxergar os sinais do Caminho, o que pode facilmente ser extrapolado para nosso dia a dia, pois a vida sinaliza, o tempo todo, a respeito da correição de nossos rumos e escolhas, ao que muitas vezes preferimos reagir como cegos...

Outra grande lição diz respeito à humildade. Lembra-se da fatídica frase que foi dita quando da inauguração do transatlântico Titanic, aquele que “nem Deus afundava”?... Pois bem: o monstrengo não chegou a concluir nem mesmo sua primeira viagem, mergulhando no abismo do mar após colidir com um iceberg.

A mesma atitude de “invulnerabilidade” estava presente quando iniciei minha peregrinação a Santiago. Afinal, havia lido muito a respeito; estava com todo o equipamento necessário, já devidamente testado; era jovem e me julgava em plena forma física; contava com a bênção de um grupo de orações, etc., etc., etc. Todos esses ingredientes poderiam redundar meramente num natural sentimento de autoconfiança. Afinal, os construtores do Titanic poderiam, sim, sentir-se seguros em atravessar os oceanos naquele navio, até então o melhor barco construído pelo homem com tal finalidade. O problema, porém, foi de atitude, de modo que, anestesiados pela arrogância, simplesmente ignoraram fatores externos que na realidade traziam grande risco para sua viagem...

Da mesma forma, no meu caso, os elementos que contribuiriam para o sucesso da peregrinação desvirtuaram a autoconfiança em arrogância, gerando, logo no início, um verdadeiro “naufrágio” de minhas projeções egocêntricas. E diria que essa segunda lição foi muito mais penosa do que a primeira, pois paguei por ela um preço deveras alto, conforme narrei com transparência em meu livro!

Portanto, fica aqui registrado: por mais que você se prepare e planeje com detalhes sua caminhada, lembre-se de ter uma postura humilde perante as coisas que o cercam. A fronteira que separa “autoconfiança” de “arrogância” parece bem estreita, é verdade, mas a diferença de efeitos é marcante.

Outra lição do Caminho vale também para a vida: cada um faz “o seu” caminho, devendo, portanto, respeitar seu próprio ritmo, gostos e preferências. Caminhe no seu ritmo, sem culpa; do mesmo modo, respeite o ritmo do outro. Fazer o caminho junto com alguém não significa necessariamente fazê-lo no mesmo compasso! Quando precisei me separar de meu irmão, por não consentir em ficar no mesmo albergue que ele elegeu para descansar, não ouvi dele nenhuma acusação, e tampouco o acusei por me deixar mais adiante, o que foi liberador para ambos.

O ato de planejar faz parte do Caminho. Sem planejamento – seja prévio, seja durante a jornada –, também se pagam preços altos. No entanto, o planejamento há de andar de mãos dadas com um elemento fundamental, e que vem a ser a flexibilidade! Não é porque você planejou caminhar quarenta quilômetros num dia que há de ficar indiferente às mensagens de seu corpo, caso ele anuncie precisar parar nos trinta!... O contrário também vale: não é por ter planejado caminhar vinte quilômetros que você não possa atender a um desejo súbito de continuar na estrada. Enfim, não permita que decisões previamente tomadas signifiquem recusas automáticas aos convites que a vida venha a lhe fazer.

Essa lição está relacionada a uma outra: respeite seu corpo! No Caminho, fica muito evidente o quanto precisamos cuidar dele para alcançar nosso objetivo, pois o corpo funciona como verdadeira “montaria”. Se não o alimentarmos adequadamente, lhe conferirmos repouso ou ainda não lhe dedicarmos os cuidados necessários, ele simplesmente nos boicotará. Em dado momento, deixei de atender à necessidade de usar um vaso sanitário, e simplesmente quase me borrei no meio do caminho! Foi uma lição inesquecível... O engraçado é que muitas vezes levamos nosso corpo a se “queixar” de inúmeras formas, e até mais de uma vez, antes de aprendermos, realmente, a ouvi-lo.

Outra lição que aprendi no Caminho foi a de não permanecer onde não me sinta bem acolhido, não importa onde tal sentimento se dê, seja num restaurante, seja num albergue. Todas as vezes que não dei importância a essa regra arrependi-me amargamente. Hoje, não preciso nem saber o “porquê”: quando sinto que não devo estar em determinado lugar ou companhia, simplesmente me retiro. Com sorte, a vida me esclarecerá as razões do sentimento posteriormente. Como diria Pascal, o filósofo: “O coração tem suas razões, que a razão não conhece”.

Não é por acaso que se costuma dizer que devemos sempre ouvir a voz de nossos corações. Não tem erro! No entanto, cuidado para não confundir “voz do coração” com sentimentalismo barato. Não estou falando de se deixar levar pelo impulso das emoções. Quem já ouviu, mesmo que uma única vez, a voz de seu coração saberá do que estou falando...

O Caminho também ensina que apenas não se comunica quem não quer. O idioma não é o maior obstáculo à falta de comunicação; a vontade de se comunicar sim.


Para finalizar, gostaria de relatar uma sensação que experimentei quando de meu retorno ao Brasil. No Caminho de Santiago, nossa mochila acaba representando tudo o que possuímos em termos materiais. Não adianta querer ter consigo mais do que o estritamente necessário, porque simplesmente o corpo não suporta “carregar”. Se o peregrino precisa provisionar alimentos, condiciona-se a fazê-lo por um dia; aquilo que será consumido dentro de dois dias ele não carrega durante esse tempo todo, mas deixa para adquirir depois. E o interessante é que as circunstâncias não apresentam muita opção para essa conduta. Acaba tendo de ser assim por força de limites que se impõem à vontade do caminhante.

Pois, sem perceber, essa rotina, seguida ao longo de trinta dias, acabou gerando em mim um padrão mental. Automaticamente, apenas cogitava de ter comigo aquilo que me serviria, para consumo, no prazo máximo de vinte e quatro horas.

Assim que cheguei em casa, foi necessário ir ao supermercado a fim de comprar um ou outro mantimento. Quando me vi no meio das gôndolas, a sensação que senti foi a de que não precisava de absolutamente nada mais do que aquilo que iria usar naquele mesmo dia! Embora soubesse que dentro de pouco tempo outras coisas mais seriam necessárias em casa, não consegui adquiri-las! Ou seja: estava funcionando dentro do espírito do Caminho, que tem por regra viver cada dia por vez, sem “pesos extras”.

Todavia, cá entre nós, ainda bem que, nesse aspecto, voltei ao “normal”, pois já pensou se, morando numa megalópole como São Paulo, tivesse de deixar para comprar mantimentos a cada dia, enfrentando o trânsito que isso requer e outras dificuldades mais?... A lição vale se tomada sob outra perspectiva: a do desapego, e também da leveza. Nesse particular, não deve ser esquecida jamais. Bem, acho que quem já foi peregrino um dia, leva consigo essa marca por toda a eternidade...

os elementos que contribuiriam para o sucesso da peregrinação desvirtuaram a autoconfiança em arrogância, gerando, logo no início, um verdadeiro “naufrágio” de minhas projeções egocêntricas.

Antoin é o autor do livro "O Caminho do Coração - rumo a Santiago de Compostela"

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