4ª Jornada - Febre
Distante 8 quilômetros da fronteira com a França, Canfranc-Estación é um “ayuntamento” com cerca de 500 habitantes pertencente à Comarca de Jacetânia, Província de Aragon, e se situa numa altitude de 1.200 metros no Pirineo
Aragonês. Foi a primeira cidade em terras espanholas que encontrei, depois de ultrapassar Somport e Candanchu, ambas estações de esqui, situadas a 1.630 metros de altitude, que criam vida intensa apenas nos finais de semana
e datas festivas, mormente quando ocorrem nevascas.
Após uma duríssima jornada, ali cheguei no dia 09/04/2004, Sexta Feira da Paixão, por volta das 17 h, extenuado pela longo percurso vencido e, imediatamente, me dirigi
ao moderno albergue local. Como antevia, o mesmo se encontrava lotado, resultado do afluxo de turistas que estavam aproveitando o feriado prolongado, para trilhar algumas etapas do Caminho com um mínimo de gasto.
O solícito
hospitaleiro local, depois de se desculpar por não poder me abrigar, indicou uma Pensão próxima dali que cobrava preços especiais para aqueles que, como eu, demandavam à Compostela. Bem hospedado, após um banho reconfortante,
e cumpridas as obrigações de praxe, por volta das 20 h, saí para jantar.
Num movimentado bar/restaurante me acomodei para tomar um aperitivo, enquanto aguardava o “Comedor” abrir. Sentia-me cansado, faminto e exaurido,
fruto da estafante etapa que acabara de encerrar. Dúvidas assaltavam meu cérebro deixando meu semblante carregado, ou talvez a tristeza e preocupação estampada em meu rosto tenham impressionado um senhor de uns 40 anos, distinto
e bem vestido, que adentrou o ambiente, pois, certamente reconhecendo-me peregrino, pediu licença e se sentou à mesa.
Apresentou-se como o Sr. Raul, psicólogo de profissão, que estava passando os feriados da Páscoa naquela
localidade. Relatou-me, em poucas palavras, que já fora caminhando até Santiago por três vezes em sua juventude, portanto, conhecia as agruras de um estrangeiro em terras alheias e, por instantes, ficamos os dois a cotejar
nossas vivências peregrinas, e isso alavancou nossa relação. Depois, deixou-me à vontade para comentar o que me corroía por dentro.
Estimulado, sentindo receptividade e confiança no meu interlocutor, coração aberto e
língua destravada por dois copos de vinho, iniciei a desaguar minhas mágoas no fluxo amargo das confidências, num processo retrospectivo de recordações. Contei-lhe, então, do meu infortúnio naqueles primeiros dias de jornada.
Para
começar, havia me perdido logo na saída de Lourdes, tendo me desgastado bem mais do que o previsto para o primeiro dia de minha peregrinação. Na jornada seguinte chovera torrencialmente o tempo todo, encharcando meus pertences
e solapando meu ânimo. Na terceira etapa fora surpreendido pela reforma do único hotel da cidade de Sarrance, local que previra pernoitar, um imprevisto que me obrigara a caminhar por mais 9 quilômetros até a cidade de Bedous,
sob a tensão e o fragor de uma nevasca iminente.
Naquele dia amassara barro e neve, quase em toda a extensão dos 40 quilômetros que trilhara. Conforme lhe confessei, as coisas não estavam acontecendo da forma que eu
prevera, de tal sorte que, desde a partida, estava me sentindo inseguro e temeroso quanto ao sucesso de minha empreitada. A viagem, inesperadamente, afigurava-se carregada de maus presságios. Parecia-me, que as forças celestiais
conspiravam em desfavor de tudo o que sonhara em relação àquela aventura.
Para encerrar, disse-lhe que, de repente, estava achando tudo sem graça e sem sentido, vez que, após tantos meses de preparação, descobria afinal,
que mentalmente não estava preparado para enfrentar tal desafio. De tudo que havia lido ou ouvido dizer sobre o sul da França, não me ocorrera nada que me parecesse interessante ao verificar com meus próprios olhos. Enfim,
eu era um homem combalido fisica e espiritualmente.
Estava até decidido a procurar no dia seguinte um Cura (padre) para me aconselhar, para tentar sair da depressão em que me havia afundado, decisão temerária que, segundo
os entendidos, só se devia tomar em desespero de causa.
O meu interlocutor, olhando-me fixamente, vaticinou: - Você foi contaminado pela “Febre de Andarilho”. Ante meu espanto, emendou: - É uma síndrome que costuma apanhar
peregrinos incautos, feita de expectativa, ansiedade, decepção. Culminando, numa confusão de sentimentos de quem se vê de repente vivendo uma experiência cuja excitação não tem condições de assimilar.
Na verdade, sob
a ótica analítica, explicou-me, tratava-se de um fenômeno típico de adptação do ser humano frente ao incerto e ao desconhecido, fomentado pelo medo de não conseguir cumprir aquilo que fora adredemente planejado.
Sua
infelicidade e agitação interna, completou, pode ser traduzida pela palavra inglesa “restlessness”: o estado em que estamos permanentemente sem descanso, com pensamentos obtusos a nos assaltar o espírito.
Segundo ele,
os que estavam mais propensos a contraírem tal vírus no Caminho eram os malemolentes que utilizavam de tal expediente para desistir ante à primeira dificuldade. Um subterfúgio, também, utilizado pelos sonhadores, não afeitos
à dura liça diária do peregrino, a imaginar que Santiago os carregaria nos braços durante a jornada.
Para dissipar minhas dúvidas quanto ao mal que me afligia, e para descontrair, disse-me que seu pai havia sido comerciante
em Pamplona por longos anos ao lado do albergue municipal. De tal sorte, que ele possuia um extenso corolário de histórias sobre o problema em debate, algumas das quais, para me animar, expôs sob sua ótica hilária.
E,
qual a cura para minha doença, indaguei-lhe, com uma curiosidade sobejante.
- Uma radical mudança de atitude, é de basilar importância, respondeu-me prontamente. Passe uma borracha em tudo o que lhe aconteceu até aqui.
A partir de amanhã pratique uma nova postura, consentânea ao teu objetivo. Sobretudo, esqueça as preocupações, evite reflexões negativas e, especialmente, tenha fé que tudo dará certo, pois ela é a luz que vai iluminar o caminho
a trilhar e a resposta para todas as suas objeções, a força para as provações e o bálsamo que suavizará suas dores.
Complementando, enfatizou: - Caminhe, de agora em diante, sempre olhando para cima e para os lados,
jamais para o chão. Com isso seu pensamento estará colado ao corpo e, assim, interagindo com as coisas que o rodeiam, como as árvores, os pássaros, o céu, a relva. Seguindo esse simples preceito, você não terá tempo para forjar
raciocínios contraproducentes ou mesmo, desanimar perante alguma desdita que possa obstaculizar seus ideais.
Eram palavras sensatas e eu tinha intenção de segui-las. Assim, agradeci-lhe pelos sábios conselhos e, em seguida,
fomos jantar.
No dia seguinte caminhei por 40 quilômetros, atento em cumprir as instruções recebidas, e à tarde, ao chegar em Santa Maria de la Serós, constatei surpreso que minha dilaceração interior desaparecera totalmente,
exorcizada pelo fervor que impusera nos propósitos de reverter meu desalento.
Como um milagre, a “febre” se fora definitivamente, sentia-me completamente curado! E jamais tive recaída!