De Lourdes a Santiago de Compostela

por  OSWALDO BUZZO

24ª Jornada – Sara


Cheguei à Astorga por volta das 11 h e depois de uma demorada visita à belíssima Catedral de Santa Maria, aproveitei a oportunidade e, retornei ao Museu dos Caminhos que conheci em minha viagem anterior. Está localizado no interior do Palácio Episcopal, sendo que este monumental castelo foi projetado por Antoni Gaudi, o genial arquiteto modernista espanhol.

Ali, em meio a estatuetas, livros raros e obras de arte, conheci uma jovem peregrina brasileira, de descendência japonesa. Com desenvoltura apresentou-me seu marido, um alemão alto e magro, cabelos castanhos e raros numa cabeça ossuda. Contou-me que residiam em Genebra, Suiça, e que vinham caminhando desde a França. Para comprovar, exibiu-me sua credencial peregrina pejada de carimbos, o primeiro deles, aposto em Le Puy.

Naquele dia, segundo ela, haviam saído de Santibañez de Valdeiglesias, 12 quilômetros atrás. Observei-a, cuidadosamente: cabelos hidratados, maquiagem perfeita, perfume ostensivo, roupas irrepreensíveis, botas novas. Olhando todos esses detalhes, foi-me difícil crer em sua afirmação. Entretanto, abstive-me de julgar por antecipação, o eventual exagero nas façanhas, por ela, relatadas.

Meus planos para aquele dia incluiam o pernoite na cidade, a fim de me desforrar de 2.001, quando ali não logrei guarida. Mas, curiosamente, não me senti atraído pelo ambiente, algo me apoquentava internamente, então, resolvi partir. Assim, após, educadamente, recusar convite para almoçar com o dinâmico casal, segui sem pressa até Rabanal del Camiño. Faminto e cansado, deixei meus pertencentes no albergue e fui a um Hostal/Restaurante lanchar.

Para minha surpresa encontrei Sara, a minha conterrânea, já de banho tomado, roupas limpas, pintura retocada, numa mesa, bebericando vinho. Disse-me que vinham caminhado quando próximo ao entroncamento para Rabanal Viejo, distante uns três quilômetros dali, seu marido sentiu-se mal. Então, dado ao infortúnio, resolveram tomar um táxi que os trouxera até aquele estabelecimento, onde estavam hospedados. Seu consorte ficara no quarto descansando, enquanto ela descera para espairecer um pouco.

Fiz os cálculos mentalmente da distância que cada de nós havia percorrido, conjugado com o tempo gasto individualmente nesse mister, e mesmo inferindo generosos descontos pelas pausas que eu efetuara em Santa Catalina e em El Ganso, as contas não fechavam. Mais uma vez refreei meu impulso de prejulgar e inquirir detalhes.

No dia seguinte saí de madrugada, enfrentei fortíssima nevasca na subida de Foncebadón e, também, durante a descida, após o Manjarin. Entrei num café em El Acebo e, surpreendentemente, encontrei o casal “binacional” numa mesa, devidamente paramentado, ingerindo seu desjejum. Como isso seria possível, comentei com meus botões.

Contaram-me que haviam chegado até a Cruz de Ferro caminhando, mas, face o mau tempo e o piso escorregadio, optaram por aceitar uma carona que lhes fora oferecida. Enquanto descreviam a aventura, com riqueza de detalhes, obliquamente, fiz-lhes uma devassa minuciosa com os olhos: botas engraxadas, roupas impecáveis, cabelos alinhados, luvas imaculadas, cajado seco e lustroso.

Com um sorriso amarelo, não pude conter um muxoxo de incredulidade e descrença ante o despautério que relatavam, ao tempo que reprimia meus impulsos, para não extravasar publicamante aquilo que estava pensando. Sem demora se despediram, e partiram apressados.

Segui pouco depois, caminhei num ritmo uniforme, e não mais os encontrei no trajeto, seja até Molinaseca ou mais à frente. Na manhã seguinte, acendeu-se em minha cabeça um pequeno foco de luz, iluminando os desvãos da ignorância onde se refugia, como um troglodita em sua caverna, o analfabeto que existe em mim.

Lembrei-me, então, que os tinha visto em Logroño, quatrocentos quilômetros atrás, num restaurante onde fora almoçar. Depois dali, nunca mais os avistara. Como eu fizera diariamente jornadas largas, e somente agora os reencontrava, era de todo improvável que estivessem caminhando.

É prática comum no Caminho utilizar-se de carro de apoio ou saltar algumas etapas. Normalmente, incorrem em tal situação, pessoas com dificuldade de locomoção, pela idade avançada ou por escassez de tempo. Mas o casal a que me referi era relativamente jovem, e por possuir carimbo em suas credenciais de todas as principais cidades da Rota, certamente distorcia, de forma excruciante, a verdade dos fatos.

Dessa forma, concluí o que era notório, faziam o Caminho sim, não à pé da forma convencional, mas, seguramente, dentro de um carro.

E tem mais:

E tem muito mais ainda...