16ª Jornada - Metade da Jornada
Havia programado ficar um dia inteiro em Burgos para compensar o que me ocorrera em 2001, quando ali passei ao entardecer e debaixo de forte chuva. Assim, ao término de minha 15ª jornada dormi em Villafria, e na etapa posterior,
caminhei apenas 10 quilômetros e me dirigi a um Hostal localizado no centro velho da cidade, onde havia reservado um quarto. A recepção do estabelecimento ficava no 9º andar, e perguntei ao porteiro do edifício como chegar
até lá.
Ele, gentilmente, com um sorriso maroto nos lábios, me explicou: “Tome o elevador ali à sua direita, aperte o botão número nove, espere que suba e a porta se abra, que então o senhor terá chegado ao nono andar.”
Até hoje não sei se ele falava sério ou estava me gozando.
Depois de demorada e prazeirosa visita à soberba Catedral da cidade, verifiquei em minha planilha de viagem que naquele dia praticamente cumpria a metade de
minha jornada no Caminho. Animado, como forma de me reenergizar, entrei numa barbearia para cortar o cabelo. Ao chegar a minha vez, o “peluqueiro” me conduziu à cadeira, deu uma volta demorada ao meu redor e, sem a menor cerimônia,
me levou até a porta, e me disse que eu ainda não estava precisando fazer tal limpeza. Ato contínuo, chamou o próximo da fila e deu seguimento ao seu trabalho.
Senti dentro de mim uma reação de desapontamento. Continuei
calmo e com o controle dos meus sentimentos, sem externá-los. Por dentro eu estava abespinhado. Assim, para me distrair, caminhei à esmo pelas ruas, observando o comércio e, uma centena de metros à frente, adentrei corajosamente
em outro salão.
Um senhor alto e magro, solene como um magistrado espanhol, ao contrário do outro, me atendeu e executou todo o ritual: tesoura picando o ar, o contorno atrás das orelhas feito à navalha; pente com algodão
para tirar os cabelinhos cortados; escova de talco no rosto; escova de roupa no meu “anorak”. Ao fim, uma reverência de mestre diante de sua obra-prima, o que lhe valeu razoável gorjeta, recebida com ar de quem coloca sua arte
muito acima de qualquer interesse.
No hostal, após demorado banho, olhei-me detidamente no espelho: preocupado, vi um rosto maltratado pelo frio, com novas rugas aparecendo, a barba grisalha repontando, lábios empolados
e ressequidos, testa vincada, olhar afadigado. E aí, também, pude perceber com mais propriedade o que o garboso barbeiro havia feito com meu cabelo: minha cabeça parecia um espanador velho e desgrenhado.