22ª Jornada – Mistério
Enquanto jantava num restaurante em Mansilla de las Mulas, observei, de soslaio, um casal de meia idade numa mesa próxima. Viviam um momento terno de sorrisos e afagos, e percebi pelo linguajar serem espanhóis. Era a primeira
vez que os avistava no Caminho, e o que mais avivou minha atenção foram seus trajes em cores chamativas: ele com um blusão amarelo “gema-de-ovo”, ela toda em azul turqueza.
Villadangos del Páramo era meu alvo na etapa
seguinte, assim, às 6 h, com a manhã ainda escura, de lanterna na mão, iniciei minha jornada. No céu estimuladas por uma lua nova, algumas estrelas madrugadoras brilhavam insolentes. Às 8 h, já em Puente de Villarente, tomei
café com torradas num bar ao lado da rodovia. Ao prosseguir, visualizei uns 100 metros à minha frente, caminhando em ritmo acelerado, o casal que me marcara na véspera.
Na entrada de León, próximo ao rio Tório, eu ainda
os tinha à vista, com suas indumentárias em cor berrante a evidenciá-los a uns 300 metros de distância. Como eles, segui por ruas largas e barulhentas em direção ao refúgio localizado no Monastério Beneditino. Ao dobrar uma
esquina, de forma inesperada, encontrei-os com um comprido mapa desdobrado na mão, a buscar informações junto a pessoas do local.
Após ter minha credencial carimbada pelas Irmãs Carbajalas, segui por ruas sinuosas e
antigas, até a estupenda Catedral de Santa Maria de la Regla (sec. XIII), considerada a jóia gótica da Espanha, chamada, também, de “Pulchra leonina”, pela pureza de suas formas. Além da exótica beleza dos seus 1.800 m2 de
vitrais coloridos que lhe valeram o título de catedral de pedra e cristal, vale ressaltar, ainda, que ela, curiosamente, tem seu pórtico orientado para Jerusalém, centro do Mundo e da Redenção.
Alguns dias antes o Presidente
da Espanha José Luis Rodríguez Zapatero havia sido eleito. Embora nascido circunstancialmente em Valladollid, fora criado e se alçara à vida pública em León e, assim, a população local ainda vivia um clima de festa em que comemorava
a feliz proeza. Havia faixas e cartazes espalhados por toda a urbe, saudando o feito de seu ilustre filho. E o binômio euforia e ufanismo acabou por me contaminar, vez que invadiu-me uma vontade avassaladora de permanecer na
cidade. Então, face à impropriedade da hora para se albergar, acabei me alojando numa pensão próxima à praça central.
Principescamente instalado, resolvi aliviar um pouco do peso que carregava, assim, fui em direção
ao prédio dos Correios e Telégrafos despachar mais alguns pertences para posterior retirada em Santiago. No trajeto, próximo ao centro velho, surpreendentemente, avistei o “casal colorido” numa esquina, ainda vestidos à caráter
e de mochila nas costas, com o enorme mapa na mão, tentando identificar o nome das ruas, verificando direções e discutindo em altos brados, numa cena burlesca e caricata.
Fiquei a observá-los com curiosidade latente
sobre o que diligenciavam, porquanto, embora nativos da terra, demonstravam dificuldade e confusão mental perante o emaranhado de avenidas e possibilidades que se desenhavam à sua frente. Cautelosamente, não quis me ingerir
em seus problemas, e segui em frente.
Mais tarde, quando ia almoçar encontrei-os novamente, envolvidos em sua busca frenética. Haviam desdobrado o imenso mapa sobre um banco numa praça e perquiriam afobadamente os transeuntes,
demonstrando já certa irritação pela demora em localizar seu objetivo. A cena era patética, e faltou-me coragem para averiguar sobre o que efetivamente procuravam.
Após a refeição fui até o Locutório “La Rua”, dar notícias
pela Internet. Depois, por volta das 15 h, segui rumo a um supermercado com o intuito de adquirir provisões. No retorno, numa rua movimentada, visualizei novamente o peregrino “gema-de-ovo”, desta vez sozinho, ainda de mochila
e com o “bendito” mapa na mão! Procurava, ainda, placas indicativas. De sua mulher, nem sinal.
Ele revelava indícios evidentes de intolerância e raiva. Tinha os cabelos em desalinho, e percebia-se em seus gestos bruscos
uma inegável exasperação. A cena era burlesca e, à distância, quedei-me a espreitá-lo, condoído pela ostensiva impaciência com que indagava passantes. Infelizmente, faltou-me, novamente, despreendimento para abordá-lo, na tentativa
de auxiliar seu intento, quiçá, minimizar seu desconforto.
Naquele instante, desastradamente, meus sentimentos de fraternidade e companheirismo foram sobrepujados pelo peso das sacolas que carregava e, com tibieza, marchei
rumo à pensão onde me hospedara. Mais tarde, o remorso fez com que eu retornasse ao local do último encontro, todavia, ali não mais logrei localizar os “peregrinos matizados”.
Mas, afinal, o que eles se esforçavam por
encontrar, de forma tão obssessiva? Uma inferência plausível para sua desenfreada pesquisa era que estivessem tentando localizar o endereço de algum hostal, loja, ou até mesmo, a casa de algum parente. Isso nunca ficarei sabendo
pois, jamais os reencontrei pelo Caminho.
Na manhã seguinte, ao deixar León, amargamente, refletia sobre o erro que conscientemente acabara cometendo. Existe um ditado que diz: “Nós atravessamos a vida carregando as
feridas do passado”. Contundentemente, essa chaga me acompanharia até Santiago.