19ª Jornada – Califórnia
No “andadero” entre Frómista e Carrion de Los Condes, observei à minha frente, um peregrino solitário que se portava de uma modo, no mínimo, estranho. Ele caminhava normalmente por centenas de metros, depois, repentinamente,
virava-se e continuava a caminhar por bom tempo, porém, desta vez de costas, num comportamento aleatório e irracional.
Cumprimentamo-nos na passagem e trocamos algumas palavras. Ele era alto, forte, canhestro, barba
cerrada, e não falava usando sentenças, mas, frases rápidas, curtas, monossilábicas. Sua expressão era séria, triste até, todavia, ao saber minha procedência, seu rosto assumiu uma expressão condescendente. Não me disse seu
nome, apenas, laconicamente, me contou que era americano, especificamente, do estado da Califórnia. E, dali em diante, eu passei a tratá-lo por esse epíteto.
Encontrei-o em algumas cidades em que pernoitei, andado pela
rua, calado, olhar perdido, sempre sozinho. Eu invariavelmente o chamava pelo “apelido” e recebia em troca, apenas, um acanhado aceno de mão.
Outros peregrinos com quem conversei depois, confirmaram tê-lo visto na trilha,
agir sempre da maneira como descrevi. Todos foram unânimes em concordar que essa sua forma inusitada de se portar poderia estar ligada à algum ritual de seita esotérica. Talvez um mantra cabalístico ou, simplesmente, uma forma
inusual de alongar os músculos de suas panturrilhas. O motivo correto, nunca fiquei sabendo.
Entretanto, na minha opinião, um procedimento insensato e temerário, vez que poderia levá-lo a sofrer um tombo, torcer o pé
ou tornozelo, e ver encerrada de forma trágica sua caminhada. Seria implausível, pensei, que agindo dessa forma, conseguisse chegar ileso ao final de sua peregrinação.
Contrariando minhas expectativas, em Santiago, após
a chegada, revi-o numa rua, barba feita, bem trajado, sorridente, ao lado de outro peregrino, defronte a uma loja de souvenirs. Ao passar por ele, não resisti e gritei: “Califórnia!” .
Um tanto assustado, ele deu ares
de não se lembrar de mim. Com a face crispada, pareceu mergulhar, siderado, numa angustiosa busca pelos abismos do esquecimento.
Finalmente, ao me reconhecer, sua face sombria iluminou-se. Imediatamente, afastou-se de
seu par, veio em minha direção e me deu um forte e caloroso abraço. Foi o primeiro e único gesto de carinho e amizade sincera que vi emanar daquele rude brutamontes, para mim, no entanto, de gratificante memória.