Pequena História de Santiago

por Walter Jorge

A Translação do Corpo para a Galicia


Nesse artigo iremos travar conhecimento sobre o que fizeram seus discípulos após o Apóstolo ter sido julgado e degolado a mando de Herodes Agripa I e o seu corpo ter sido jogado fora dos muros da cidade para ser devorado pelas feras.

Após sua morte, começam as variações nas histórias sobre o Apóstolo. A mais comum refere-se que os discípulos de Tiago, Teodoro e Atanásio, devido ao fato de que Herodes ter proibido que não se executassem nada dentro dos muros urbanos para não contaminar a cidade e como uma lição para os vivos, durante a noite, com um grupo de cristãos, recolheu os restos mortais que tinham sido atirados fora dos muros da cidade para que os cães, as aves de rapina e as feras o devorassem.

Gravura representando a colocação do corpo de Santiago em um barco sem velas e sem leme pelos seus dois discípulos, Teodoro e Atanásio


Ninguém duvida sobre a decapitação de Santiago na cidade de Jerusalém, porque a notícia dos Atos dos Apóstolos é clara a este respeito. Onde é que o mesmo foi enterrado? Alguns documentos antigos, depois de falar do martírio na Cidade Santa, acrescentam “ibique sepultus est”: ali foi enterrado. Mas seria estranho que não houvesse nenhuma notícia do culto, sobretudo tratando-se do primeiro dos mártires do colégio apostólico. Sinal de que não havia consciência do seu enterramento em Jerusalém.

Naquele tempo já havia meios de conservação dos cadáveres bem como a existência do trafego de embarcações até a costa ocidental da península Ibérica, no entanto a lenda informa que os seus discípulos levaram o corpo até à orla do mar onde, numa barca sem leme nem vela, guiados pôr um anjo, empreendessem a viagem de regresso a Hispânia (península Ibérica), onde o Apóstolo teria realizado sua pregação. Navegando desde a Palestina, passam pelas colunas de Hércules (Gibraltar), bordejam a “Lusitânia” (costa de Portugal) chegando após sete dias de navegação à Vila Arosa, na atual Galícia, onde a 8 de agosto encalha nas areias de Padrón.

No entanto na lenda do Cavaleiro Caio, em um dos seus trechos há uma contestação à versão acima, quando diz: “Cavalgavam pelo areal quando alguém avistou no mar uma barca navegando com a proa para o norte. Pararam todos para observar a majestosa beleza da embarcação, que vogava calmamente com todo o pano desfraldado”.

Desta aventura marítima nasce o mito que fez das conchas de Vieira um dos símbolos dos peregrinos a Santiago de Compostela. Um cavaleiro que se afogou, quando seguia por terra à barca dos discípulos, regressou à superfície coberto por estas conchas. É assim que desde a Idade Média, a concha de Vieira, posta no peito, ou no chapéu, se tornou à marca inequívoca que permitia o acesso às hospedarias.

Gravura representando a translação do corpo em uma carroça puxada por bois selvagens que foram amansados pelos discípulos de Santiago, Teodoro e Atanásio


Não poderemos aqui de deixar de tecer algumas considerações a respeito da chegada da embarcação nas areias de Padrón. Anteriormente escrevemos que Santiago durante a sua pregação na Península Ibérica, quando de sua passagem por Padrón, fundou uma Igreja dedicada a Maria, e por conhecidência, ou deliberadamente, seus discípulos trouxeram o seu corpo para o mesmo lugar a procura de um local para sepultá-lo.

Há de se perguntar porque os discípulos do Apóstolo levaram o seu corpo para a Galícia onde a lenda e a tradição também o informam? Poderemos tecer várias teorias sobre o assunto: a primeira porque era a terra na qual os mesmos detinham conhecimento por nela morarem; a segunda porque Santiago tinha passado vários anos em sua pregação na Península Ibérica; e por último não podemos deixar de pensar e acreditar ser a mais viável, que o Apóstolo o teria solicitado em vida.

Após a chegada à Vila de Arosa, Atanásio e Teodoro decidem subir o rio Sar (hoje Ulla) até Iria Flavia (atual vila Padrón), onde amarram a barca a uma coluna de pedra que se diz ser a mesma que está hoje sob o altar-mor da Igreja Paroquial de Santiago de Padrón, colocam o corpo do Apóstolo sobre uma pedra que amolece e toma a sua forma convertendo-se em um sepulcro, milagrosamente, o que vem a dar o nome do lugar: Padrón.

Em seguida procuram um local apropriado para enterrarem condignamente o corpo do Apóstolo e entram nos domínios de uma matrona galaico-romana conhecida como rainha Loba ou Lupa, uma dama pagã, rica e influente que vivia com a sua filha em um grande castelo situado no velho Castro Lupário ou Castro de Francos nas proximidades de Compostela e pedem-lhe que os deixe sepultar o corpo de Tiago. Lupa era pagã e por isso os aconselhou a consultarem o governador romano representante de César na região um tal Filotro, que residia em Dugium perto de Finisterra que logo os prende por defenderem a nova doutrina de Cristo.

Auto relevo da Custodia de Antonio de Arfe no Museu da Catedral de Santiago (1539-1554) a qual lembra o milagre da queda da ponte sobre o rio Tambre quando os discípulos foram perseguidos pelos soldados romanos


Presos, conseguem fugir, segundo a lenda um anjo milagrosamente ajuda os dois discípulos de Tiago na sua fuga perante os soldados romanos, fazendo desabar a ponte de Nícraria (identificada como a ponte romana de “Nos” ou “Puente Pias” sobre o rio Tambe, hoje sob as águas do enrrocamento da barragem de la Maza) logo após sua passagem, permitindo assim ficarem isolados. Diz-se que os seus vestígios ainda jazem no fundo do rio.

Os dois discípulos voltam novamente à presença de Lupa que, nem com este espantoso fenômeno se comoveu, e para pô-los à prova, os aconselha ainda a ir a um monte próximo de nome Iliciano (hoje conhecido como Pico Sacro, a 15 km de Santiago de Compostela) dizendo-lhes: “Ide aquele monte e buscai dois bois que atrelareis a este carro e levai vosso Amigo e vosso Mestre para sepultardes onde queirais!”. Sabia Lupa que não havia bois, mais sim touros selvagens. Primeiro apareceu-lhes um dragão que os atacou, mas ao fazerem o sinal da cruz, o dragão desfez-se e quanto aos touros amansou-os com o mesmo gesto. Ao ver o acontecido, à rainha Lupa acaba por se converter oferece-lhe abrigo e deixa-os enterrar o corpo de Tiago.

Começa então uma outra jornada até “Liberum Donum” ou “Libre-don”, (atual Santiago de Compostela), efetuada numa carroça puxada pelos bois. Conta à tradição que os bois começaram a caminhar sem nenhum tipo de guia, e instintivamente, movidos pela sede, pararam num lugar que, escavaram, logrando que brotasse água. É a atual fonte do Franco, junto do Colégio de Fonseca, lugar que posteriormente se levantou uma pequena capela como recordação ao Apóstolo, na rua Santiaguesa do Franco. Os animais continuaram o seu caminho até chegar a um terreno, de propriedade de Lupa que, convertida finalmente a fé cristã, os doou gratuitamente para a construção de um monumento funerário.

Painel representando a translação do corpo de Santiago para a Galícia existente no Museu Diocesano de Camerino na Itália


Nesse local os discípulos colocam as relíquias numa arca de mármore que seria a “Arca Marmárica” ou as “Arcas Marmóreas” de que muito se fala à tradição, constroem sobre ela um altar e uma pequena capela, a qual fica entregue aos cuidado dos dois discípulos que, ao morrerem, são sepultados ao lado do Apóstolo, assim justificando que fossem três os túmulos de mármore descobertos posteriormente oito séculos depois. O local foi onde mais tarde se levantaria a Catedral, centro espiritual que preside a Cidade de Santiago de Compostela. A partir desse momento o corpo esteve escondido até que teve lugar a sua “Revelação”

Segundo alguns, o local tinha sido ocupado por um cemitério da época romana passando a ser conhecido nos tempos medievais como “Campus Stellae”, que a partir de então ganha o nome de Compostela. A arqueologia posteriormente demonstrou a real existência das tumbas romanas.

No próximo artigo, em continuação da História sobre o Apóstolo Santiago, abordaremos como surgiu a “Revelação”, ou seja: a descoberta do seu túmulo dando origem a uma tradição.

E tem mais:

E tem muito mais ainda...