As Peregrinações (primeira parte)
Após a queda do Império Romano a cidade de Santiago de Compostela consolidou-se. Encontrava-se em pleno desenvolvimento, as doações se sucediam bem como o que auferia com os “Privilégios” colocava-a naquela época, como um dos
maiores centros de peregrinação européia, ao lado dos que rumavam em direção a Terra Santa (Jerusalém) e a Roma.
Vejamos como se desenvolveu as peregrinações ao túmulo do Apóstolo Santiago.

Peregrinar é um símbolo de vida, basta recordarmos que peregrinar é um ritual comum à imensa maioria das religiões, para a concretização desse ritual, depende da concepção que temos de Deus, do homem e do mundo que tem
cada credo religioso. A peregrinação é uma jornada empreendida, por motivos religiosos, a um lugar considerado de algum modo sagrado ou milagroso. Dá-se o nome de “peregrino” ou de “romeiro” a todo aquele que toma parte
numa viagem dessa natureza, no entanto com o advento das peregrinações a Santiago de Compostela, ela tomou um sentido mais preciso, assim passou a denominar que “peregrino” por antonomásia é o que vai a Santiago de Compostela,
são “palmeiros” os que vão a Terra Santa e “romeiros” os que vão a Roma.
Outra derivação mais antiga, mais poética, revela-nos que peregrino tem sua raiz no latim “per agrum” “através do campo”. Essa velha imagem
sugestiona umas almas curiosas, que vai além dos limites conhecidos, atravessa campos, toca o chão com um destino na mente e um propósito no coração. Os peregrinos são pessoas que estão sempre em movimento, passando por
territórios alheios em busca de uma interação, clareza, um destino para o próprio espírito, para que este possa apontar o melhor caminho a seguir.
Se centrarmos nossas observações na tradição religiosa de onde se
deriva o cristianismo, podemos afirmar que a Bíblia é um testemunho escrito de uma peregrinação que marca o caminho do homem atrás de sua felicidade, destino para o que Deus havia criado. Abraão (Gn 12, 1-9) é apontado
como o grande exemplo do homem de fé, foi um dos primeiros peregrinos errantes na busca dos destinos que Deus lhe havia anunciado. Peregrina Jacob, o grande patriarca. Os povos de Israel ao se libertarem da escravidão imposta
pelos Faraós do Egito, peregrinam quarenta anos no deserto, forja-se como um povo em busca da terra prometida (Ex 19, 1-2; 40, 36-38). Esses anos constituíram um tempo intensivo de purificação e foi nessa ocasião que Deus
estabeleceu a Aliança com o seu povo no Monte Sinai. Os Apóstolos e, sobretudo Santiago, anunciam a Boa Notícia de Jesus liberando definitivamente os obstáculos – invisíveis para o homem – que os impediam de serem felizes
e peregrinam por todo o mundo conhecido naquela época.

Jesus também peregrinou. Quando completou doze anos, Jesus acompanhou Maria e José a Jerusalém por ocasião da festa da Páscoa (Lc 2, 41-42). Aliás, toda a sua vida pode ser entendida como uma peregrinação constante: de
Nazaré ao rio Jordão, onde foi batizado (Mc 1,9); da Galileia a Jerusalém, onde sofreu a paixão e foi crucificado (Lc 9, 51).
Quando os cristãos europeus se viram ameaçados em sua fé pelo avanço dos muçulmanos, se
afirmam na peregrinação procurando peregrinar ao recém descoberto Sepulcro do primeiro Peregrino cristão do Ocidente: Santiago “o trovão” mote que lhe pós Jesus, o Salvador.
O fenômeno da formação do Caminho de Santiago
começou na primeira metade do século X, poucos anos depois da descoberta da Tumba Apostólica ocorrida por volta do ano de 829. Este acontecimento ocorreu quando a Europa vê perigar sua identidade e sua cultura (ambos baseados
em uma fé comum), pelo avanço do Islamismo que chegou a invadir a Espanha e parte da França e o Adopcionismo, doutrina patrocinada pelo Arcebispo de Toledo que buscava rebaixar a fé cristã para fazer-se compatível com os
novos invasores. A notícia dada a todos pelo Bispo de Iria Flavia, Teodomiro e pelo rei Afonso II “O Casto”, desata um movimento em toda a Europa que busca manifestar sua solidariedade com referência ao Apóstolo Santiago.
Foram
os Monges da poderosa ordem de Cluny os principais promotores das peregrinações da Idade Média, as peregrinações partiam dos quatro cantos do Velho Continente e inclusive do Oriente, os peregrinos foram gradativamente estabelecendo,
ao longo dos séculos, rotas mais ou menos fixas, ainda que muito variadas. O grande Mosteiro Cluniense de Sahagún, lugar de passagem de todos os peregrinos, converteu-se num foco de devoção ao Apóstolo Santiago, e em um
ponto para controlar o fluxo dos peregrinos.

Com freqüência, a peregrinação era uma pena imposta em resultado de algum crime cometido ou até mesmo uma forma de ganhar dinheiro, já que existiam casos em que o réu, sendo rico, enviava a Compostela um pobre pagando-lhe
as despesas, com o compromisso de este dedicar uma parte da penitência à salvação do seu “cliente”.
A mais importante expressão da renovação da espiritualidade no séc. XI foi a que se originou em Cluny, foi
a “peregrinação penitencial”, a mesma era imposta para os pecados mais graves. Da mesma se aproveitou Foulques Nerra de Anjou ou Roberto, o Diago, conde da Normandia que fora a Jerusalém para escapar da punição divina pelos
crimes cometidos.
As peregrinações datam, no Cristianismo, dos séc. III e IV. Quase todas as religiões, contudo, adotaram-nas como forma de culto religioso. Seu postulado fundamental é que a divindade exerce, em
determinado lugar, influxos e benefícios especiais para os que a visitam.
As primeiras peregrinações ao túmulo de Santiago eram empreendidas pôr caminhantes originários apenas dos reinos da Galicia e Astúrias, mas,
a despeito dos perigos, começou a crescer, ano após ano, o número de pessoas dispostas a enfrentar os riscos e o desconforto de trajetos cada vez mais longos. Começaram a partir peregrinos de vários cantos da Europa, e
devido ao impressionante fluxo de peregrinos, o Caminho assumiu uma feição física visível.
O caminho basicamente definido era constituído de numerosas vias romanas que uniam diferentes pontos da península. Devido
ao impressionante fluxo humano, havia a necessidade de dotá-lo de uma infra-estrutura necessária para atender e dar proteção aos peregrinos e assim são instalados os primeiros locais de hospedagens gratuita nos principais
mosteiros ao longo dos trajetos mais utilizados, criando-se hospitais e cemitérios, erguendo-se pontes, construindo-se igrejas, instalando-se mosteiros e abadias e, o mais importante, fundando-se uma infinidade de núcleos
de povoação ao longo da rota, com os reis e os grandes senhores cristãos assumindo, assim, a responsabilidade pelos peregrinos, constituindo um legado histórico e artístico tão importante que ainda hoje é impossível determinar
o seu valor.
Quando se inicia o século XI, Sancho III, de Navarra, determina o percurso que permanece até os dias atuais. A partir dos meados do séc. XI, o culto jacobeu vai alcançar uma dimensão desconhecida com
o auge das peregrinações; porque os peregrinos são devotos do Apóstolo que desenvolvem o culto no caminho do seu esforço e dos sacrifícios da viagem, e quando chegam a Compostela aumentam-no com a sua presença e espiritualidade.
O caminho de Santiago converte-se num imenso templo em que se venera o Apóstolo, o qual recompensa aqueles que fazem o bem aos romeiros. Por isso foram os reis de Leão os únicos que usaram do seu poder para favorecer o
culto a Santiago; Sancho Ramirez de Navarra, por exemplo, dispõe por volta de 1080 que em Jaca e Pamplona, as duas entradas pirenaicas da peregrinação jacobeia, não se efetue nenhuma cobrança aos peregrinos.
No próximo
artigo continuaremos a tecer considerações sobre as peregrinações ao túmulo do Apóstolo Santiago.