Privilégio – Os Votos de Santiago
Para que possamos melhor compreender a decadência do Caminho, artigo sobre o qual falaremos em seguida, temos a necessidade de tomarmos conhecimento mais profundo com “Os votos de Santiago” privilégio concedido a Santiago de
Compostela por Ramiro I, rei de Astúria quando da sua vitória frente ao Cordobês Ald Al-Rahman II, na famosa batalha travada em Clavijo (que na verdade, se deu durante o reinado de Ordono II de Leão).
Vejamos do que
se trata.

Os Votos de Santiago, também chamado de “Diploma de Santiago”, eram um tributo que os camponeses das terras cristãos deviam pagar anualmente a Santiago de Compostela, no montante de uma medida de pão ou vinho, consoante
o tipo de terreno, tanto das propriedades laicas, como das eclesiásticas, por cada junta de bois. Segundo a tradição, este ônus surgiu na seqüência de outros mais aviltantes assumidos pelos cristãos no período da dominação
muçulmana, para poderem continuar a viver em relativa paz e a gozar de alguma liberdade religiosa e que consistia, além de outros tributos, na entrega anual ao emir de Córdoba de cem donzelas virgens, que passariam a incrementar
os haréns do Islam em Andaluzia, em virtude de um pacto assinado de não agressão com o monarca Mauregato, um dos três reis (Aurélio, Silo e Mauregato), chamados de Reis Holgazares (folgados, ociosos).
Ramiro I de
Aragão deparou com esta situação vergonhosa e decidiu pôr-lhe fim. Convocou para isso os príncipes do reino os quais abraçaram a idéia de atacarem o emir de Córdoba. Os dois exércitos encontraram-se e os cristãos foram
rapidamente derrotados. Desanimados, Ramiro I ao cair da noite adormeceu e o Apóstolo Santiago aparece-lhe em sonho, assegurando-lhe a vitória no combate seguinte contra os árabes.
E, na verdade, na manhã seguinte,
foi travada no ano de 834, a lendária batalha de Clavijo, o rei Ramiro I durante o combate, viu-se ajudado por um desconhecido cavaleiro montado num cavalo branco que, com a sua espada atacava com denodo os mouros. Sentiu-se
que estava ao lado do Apóstolo Santiago, desde então transformado em “Santiago Matamouros”, essa foi uma aparição fundamental na vitória dele contra o emir Abd Al-Rahman II. (Vide artigo 11 intitulado “O Carismático”).
A
autonomia dos reinos cristãos estava assim assegurada. Para demonstrar ao Apóstolo a sua gratidão, os príncipes, incluindo Ramiro I, prometeram dar anualmente à Igreja de Santiago um dizimo do melhor vinho e trigo proveniente
das terras pertencente aos cristãos.
Os historiadores dividem-se quanto à autenticidade dos motivos subjacentes a esta incumbência. Para uns foi Ramiro II que após ter vencido em Simancas Abd Al-Rahman III em 939,
prometeu pagar a Compostela um censo anual das terras a ocidente do rio Pisuerga. Outros como Sanchez-Albornoz, aceitam que Ramiro II tenha feito a doação a Santiago de Compostela, não pela graça recebida mercê da intercessão
do Santo em Simancas, mas antes da batalha de Clavijo.
Existe uma outra versão de que entre os anos de 1155 e 1172, o canónigo Pedro Márcio inventou o “Privilégio dos Votos”, a propósito de e falsamente, atribuindo-o
a Ramiro I, em agradecimento ao Apóstolo por sua intervenção milagrosa na Batalha de Clavijo. Esse falso privilégio concedia a igreja de Santiago de Compostela, a obrigatoriedade de todo o camponês do norte da península
Ibérica a pagar um dizimo do melhor vinho e trigo, ademais a entrega ao Apóstolo de uma parte do botim correspondente a um soldado em cada campanha contra os sarracenos.
Todos os historiadores estão de acordo em
não acreditar na doação desse privilegio a Catedral de Santiago de Compostela no tempo de Ramiro I. No entanto, ele aparece firmado pelo rei, com data de 25 de maio de 844 em Calahorra. E foi este documento que os prelados
utilizaram para exigir votos aos camponeses.
Apesar da sua falsidade, a concessão acabou ampliando-se por toda a Espanha. Dessa maneira a Diocese de Compostela tornou-se rapidamente numa das Dioceses mais importantes
da Península. O montante dos votos passou a constituir uma receita bastante substancial. No entanto, não são somente os “Votos de Santiago” que vão torná-la tão atraente. Não poderemos de nos esquecer de que o “Caminho
de Santiago”, naquele momento começa a intensificar-se na seqüência da divulgação da noticia relativa ao aparecimento do corpo do Apóstolo. As peregrinações ao túmulo do Apóstolo fazem com que toda a cidade se desenvolva
e enriqueça. Mesmo assim, para as outras dioceses, a posse única de Santiago pelos votos, fazia com que os prelados disputassem este benefício. E de tal forma eles assumem importância, que o papa Pascoal II em 1102 os confirma,
reconhecendo à Sé Compostelana o “direito” de os receber por cada junta de bois com que se lavrassem as terras entre o rio Pisuerga e o mar.
Afonso VI ampliou o pagamento a Toledo em 1150 e mais tarde, os reis Católicos
em 1492 integraram Granada no pagamento do Voto e, posteriormente, em 1570, todas as terras situadas ao sul do Tejo, Desta forma a Diocese Compostelana logrou que o pagamento do Voto de Santiago se estendesse no século
XVI á praticamente metade das suas receitas.
Com relação a Portugal, sabemos que os votos de Santiago existiram somente ao norte, mais precisamente nas dioceses de Braga, Porto, Coimbra e Terra de Riba-Coa. A primeira
diocese em território Português a interessar-se pelos benefícios materiais que os votos permitiam, foi a de Braga, que os arrendou por volta de 1121, como se deduz do fato de nessa altura ter iniciado o pagamento da respectiva
renda á Igreja de Santiago de Compostela. Ao contrario do Porto, que só os virá a arrendar em 1179, contrato que viria a ser confirmado pelos papas Inocêncio III e Honório III.
A situação em Braga evoluiu e entre
1216 e 1220, esta diocese apropria-se dos votos, ao contrário do Porto, que continuou a cumprir o contrato celebrado com Compostela, como veremos em seguida. Os votos de Santiago vieram, assim, a converter-se por um lado,
numa importante fonte de renda das mitras e Cabidos e, por outro lado, numa grande preocupação para essas mesmas instituições, pois, desde cedo, tanto Braga como o Porto começam a ter problemas com os camponeses quanto
da sua cobrança. Braga sentiu logo a oposição frontal das freguesias voteiras e no Porto surgiram três julgados, no âmbito da sua jurisdição, a resistirem ao seu pagamento principalmente quando a diocese elevou o quantitativo
anual para além do que tinha sido fixado pelo rei Ramiro, exigindo não só votos pelos casais habitados, como pelos ermos. São eles: Vila Nova de Gaia, Maia e Vila da Feira, que com um forte sentido de união se recusaram
terminantemente a pagar mais do que o prometido pelo rei Ramiro ao Apóstolo Santiago.

Logicamente, um conflito desta natureza não poderia passar despercebido aos monarcas D. João I e ao seu filho, o Infante Dom Duarte, que passaram a se preocuparam com o desenrolar dos acontecimentos que agitavam as principais
dioceses do norte do país e os camponeses dessas mesmas regiões.
De inicio o monarca sente-se perplexo para tomar qualquer atitude decisória e, por isso, vai favorecendo alternativamente as duas facções. Assim, se
por um lado adverte as dioceses das posições demasiadamente duras face á desobediência dos camponeses, considerando as excomunhões infligidas aos mesmos como penas desproporcionadas á natureza das infrações, por outro lado
manda recolher as cartas outorgadas por ele e pelo Infante Dom Duarte a favor das autoridades eclesiásticas de Braga e do Porto.
O conflito agravou-se a tal ponto que o próprio papa Martinho V interveio a favor dos
prelados, com um breve, datado de 13 de fevereiro de 1425, dirigidos aos camponeses que se não pagassem os votos exigidos pelas dioceses, incorreriam em censuras eclesiásticas.
Relativamente ao bispado do Porto e
como os problemas continuavam a deteriorem-se, D. João I consciente de que nem os três referidos julgados e nem o bispo e o Cabido do Porto cediam, em 26 de abril de 1432 encontrando-se em Torres Vedras, determina finalmente
que todos os camponeses que costumavam pagar votos o fizessem, conforme os usos e costumes de cada julgado. Esta decisão visava apenas os casais povoados, ficando os ermos definitivamente desonerados do pagamento de quaisquer
votos.
Se o monarca chegou a pensar que esta decisão resolvia o problema existente entre as dioceses e os camponeses do norte, enganou-se, pois os camponeses dos julgados de Gaia, Maia e Vila da Feira, continuaram
a recusar-se a pagar mais do que o estipulado nos votos do rei Ramiro. Para isso, invocaram, sempre que possível, as cartas de D. João I, enviadas a João Fogaça e a Rodrigo Eanes. E ainda a carta do Infante Dom Duarte dirigida
ao arcebispo de Braga, apesar de posteriormente às mesmas terem sido recolhidas e anulado o seu valor. Entretanto na diocese do Porto, continuava a exigir dos camponeses, quantias superiores ao que estava estipulado para
os casais habitados, não se abdicando dos votos pelos casais ermos e quando, face à continuação destes abusos, se chamava à atenção para a determinação régia de 1432, logo era assegurado o seu fiei cumprimento.
Tomamos
conhecimento do que foi os “Privilégios” ou os “Votos de Santiago”, as vantagens que a cidade de Santiago de Compostela auferiu com os mesmos, bem como os problemas que trouxe para determinadas cidades da Espanha, no próximo
artigo iremos abordar a “Decadência do Caminho”.